Sidarta Ribeiro: "A maconha é uma commodity importante no século XXI. O Brasil é um país que tinha que estar liderando isso". Foto: Elisa Elsie
Sidarta Ribeiro: “A maconha é uma commodity importante no século XXI. O Brasil é um país que tinha que estar liderando isso”. Foto: Elisa Elsie

O maior problema da maconha no Brasil é “o acesso medicinal para quem precisa e a profunda injustiça na aplicação da lei que criminaliza pessoas pretas e pobres, de maneira consistente, livrando a cara das pessoas da classe média ou das pessoas mais ricas, que são brancas”. Quem afirma é o neurocientista Sidarta Ribeiro, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e uma das principais vozes no Brasil que chama a atenção para a necessidade de enfrentar o tabu em torno da legalização da cannabis.

Recentemente, ele lançou o livro “As Flores do Bem” (editora Fósforo, 2023), no qual discute aspectos históricos, políticos, econômicos, científicos e sociais que envolvem a cannabis. O livro chegou em um momento peculiar: quando dois dos Poderes da República — Legislativo e Judiciário — voltam suas atenções para a cannabis e a colocam em meio a uma disputa de poder.

O NOVO procurou o neurocientista para ouvir sua opinião sobre o julgamento no Supremo Tribunal Federal, sobre PEC que tramita no Congresso e outras questões ligadas ao tema. A entrevista ocorreu na última quinta-feira (25) e nela Sidarta faz um alerta: toda a sociedade brasileira perderá caso não encare a legalização da cannabis de maneira racional, amparada pela ciência.

Novo Notícias: Como você está vendo o julgamento no STF acerca da descriminalização da maconha, que caminha para estabelecer um parâmetro de consumo (25 gramas ou seis pés de plantas fêmeas)?

Sidarta Ribeiro: Vejo como um avanço modesto, porém necessário. A gente tem que lembrar que esse recurso extraordinário, embora diga respeito à maconha, tratava-se de uma pessoa que já era detenta e que foi apreendida com três gramas de maconha. Ele teria repercussão geral e se aplicaria a todas as drogas. E, inclusive, esse foi o espírito do primeiro voto, do ministro Gilmar Mendes, que foi a favor do estabelecimento de limites quantitativos para separar usuário de comerciante varejista de drogas para todas as substâncias. Depois isso acabou convergindo apenas para a maconha, o que não vai resolver completamente o problema, mas vai arrefecer, mitigar a pressão em cima do sistema carcerário, que é muito grande, que a gente sabe que é de cunho racista e classista.

NN: Você acha que tem chance de se chegar a um termo adequado neste julgamento?

SR: Eu acho que esse julgamento caminha para essa conclusão que você antecipou. A questão é que o Senado Federal teve uma iniciativa contrária, que essa PEC 45, que pretende criminalizar qualquer quantidade de substâncias ilícitas. E que parte dessa falácia que é a ideia de que existem substâncias ilícitas que são do mal, que precisam ser proibidas; e que as outras que são lícitas são do bem. Isso é uma grande besteira e tem um grande conflito de interesses aí em quem defende essa posição.

Que conflito de interesses é esse?

SR: O que existe hoje é o discurso de que certas drogas precisam ser proibidas, em particular a maconha. E esse discurso é frágil. Agora, o que tem por trás dele? Conflito de interesse da própria indústria farmacêutica e das outras drogas lícitas, recreativas, que não querem essa competição da maconha e de outras substâncias ilícitas. Do sistema, do aparato de segurança que está corrompido, que está infiltrado por facções, por milicianos que participam desse comércio altamente lucrativo. O que faz ele ser lucrativo é a sua proibição, porque isso eleva o preço enormemente. Evidentemente, tem todo um sistema que trata o uso problemático de substâncias de uma maneira moralista. Então, as comunidades terapêuticas com religiosos também se beneficiam desse tipo de discurso. E eu quero reforçar que existe um claro viés racista e classista na política de drogas. Eu diria que quem mais se beneficia disso no país é a branquitude, a classe média branca que consome todas as substâncias que tem vontade, sendo sempre olhada pelo sistema como usuária, enquanto que uma pessoa favelada, periférica, negra, mesmo com quantidades ínfimas de maconha, pode ser vista facilmente como traficante.

Que avaliação você faz da discussão no Senado, com relação à PEC das Drogas?

SR: Rasa, demagógica e, no limite, sádica. Aliás, isso ficou muito claro no voto do ministro Alexandre de Moraes, no STF, que a aplicação da Lei 11.243, que é a nossa Lei de Drogas, é profundamente injusta. Ela é estruturalmente injusta. A gente só vai mudar isso se mudar não só a lei, mas também a visão da Polícia Militar, a visão dos juízes que fazem audiências de custódia na primeira instância. Essa discussão da PEC que começou no Senado e que agora está indo para a Câmara, basicamente dominada pelas bancadas da bala, da Bíblia e do boi. E é uma discussão extremamente anti-científica e ideologicamente corrupta, cheia de conflitos de interesse.

Qual o maior problema da maconha no Brasil?

SR: É o acesso medicinal para quem precisa e é a profunda injustiça na aplicação da lei que criminaliza pessoas pretas e pobres, de maneira consistente, livrando a cara das pessoas da classe média ou das pessoas mais ricas que são brancas. Então, o Brasil já tem maconha medicinal disponibilizada nas farmácias há mais de oito anos. De fato, ela já está legalizada. Seu uso terapêutico já está legalizado, mas apenas para quem tem muito dinheiro.

A maconha causa esquizofrenia?

SR: Não. A maconha não é uma fábrica de esquizofrênicos, como alguns psiquiatras proibicionistas tiveram a pachorra de defender. A maconha pode sim precipitar um surto psicótico numa pessoa que já tem uma tendência familiar, uma tendência hereditária para esquizofrenia ou alguma outra doença que envolva psicose. Então, isso acontece por causa de um componente específico da maconha, que é o THC. Pessoas que têm esse tipo de hereditariedade, de genética, devem evitar o consumo do THC, como de resto, devem evitar o consumo do álcool e várias outras substâncias. Mas, por outro lado, existem moléculas da maconha, como o canabidiol, que tem efeito antipsicótico. Então, pessoas que têm esse tipo de transtorno, de propensão genética, podem sim consumir medicamentos à base de cannabis ou a própria cannabis quando ela for rica em canabidiol e não contenha grandes quantidades de THC. O que também está muito claro é que uma pessoa que não tem uma genética para esquizofrenia, ela não vai se tornar esquizofrênica porque consumiu cannabis ou qualquer outra substância. Isso não acontece. Se uma pessoa tem uma história familiar de esquizofrenia ela deve tomar muito cuidado com o THC e com outras substâncias psicodélicas, como por exemplo, a ayahuasca. E também deve tomar muito cuidado com álcool. E isso não seria uma razão para proibirmos o álcool, mas é uma razão para que a pessoa saiba que ela pertence a um grupo de risco e evite aquela substância. Assim como a gente protege as pessoas que são intolerantes à lactose e que não consomem leite ou laticínios com lactose.

No seu livro você também aborda a questão da idade para consumo de cannabis. Como é isso?

SR: Eu tenho insistido nesse ponto: a não ser em casos de indicação médica em que uma criança ou adolescente pode precisar de fazer uso de um medicamento à base de cannabis, a maconha não é para jovens. A maconha traz muitos benefícios para indivíduos adultos e idosos que não fazem parte de grupos de risco. Agora, para pessoas muito jovens, para adolescentes, o uso precoce e abusivo da cannabis está associado a uma síndrome amotivacional. Isso não vai acontecer com todos os indivíduos, mas pode acontecer com muitas pessoas que são vulneráveis. A gente recomenda que o uso da cannabis — seja fumado, como óleo ou em qualquer outra apresentação — não seja realizado durante a adolescência, que é um período de desenvolvimento e de aprimoramento dos circuitos cerebrais pré-frontais, que estão ligados ao controle inibitório, à tomada de decisão. É um momento muito importante na vida das pessoas, com grandes transformações, e o uso precoce e abusivo de maconha pode levar a essa síndrome amotivacional, que, por sua vez, pode levar a prejuízos acadêmicos e a uma série de dificuldades sociais. Isso se verifica em termos epidemiológicos e existe boa razão para que a gente proteja os jovens disso. Mas isso só pode ser alcançado com um debate muito franco. Se você chega para um jovem e diz para não fumar maconha porque a maconha mata neurônio, ele vai descobrir, em uma rápida busca na internet, que isso é mentira. A maconha, na verdade, produz novos neurônios, novas conexões entre neurônios. E aí você perde a interlocução com esse jovem. Mas se você diz: “olha, não fume maconha na adolescência porque vai haver um aumento da produção de neurônios e você já tem muito neurônio, não precisa de mais. Um excesso pode ser prejudicial” — acho que você começa a conquistar uma credibilidade nesse diálogo e ajudar a pessoa a se proteger. Na verdade, é compreender que aquilo que num certo momento é inadequado, num outro momento pode ser adequado. Debate semelhante acontece em relação ao sexo. Não pode chegar para um jovem adolescente e falar “não faça sexo porque é ruim”. Você vai perder sua credibilidade se você disser isso. Agora, se você disser “olha, o sexo feito antes da hora, com a pessoa errada, no local inadequado, pode ser bastante ruim” — aí você começa a ganhar mais credibilidade. Acho que essa analogia sobre educação sexual é boa para a gente pensar uma educação para o uso de drogas. Em vez de fazer o pânico moral contra as drogas é compreender que as drogas fazem parte da sociedade e que as pessoas frequentemente fazem uso de várias drogas diferentes, que são lícitas, que nós deveríamos ter todas as substâncias regulamentadas de acordo com as suas potencialidades positivas e negativas, de maneira científica e isonômica, sem nenhum tipo de preconceito e também sem glorificar nenhuma substância.

Na sua opinião, qual seria a regulamentação adequada para a cannabis no Brasil?

SR: A gente precisa garantir que as associações possam funcionar. Isso significa também que existam convênios entre as associações, universidades e institutos de pesquisa para fazer o suporte técnico, dosagem, controle de qualidade, controle de contaminantes, etc. A gente precisa de um ecossistema diverso de empresas. Não só as grandes farmacêuticas, mas empresas de todo tamanho, que façam reparação social, ou seja, que seja dado um benefício para as pessoas que sofreram com a guerra às drogas, que foram penalizadas pelo impacto da guerra às drogas nas suas comunidades, seja na educação, seja na saúde, como está bem medido pelo pessoal do CeSec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) do Rio de Janeiro. E que essas pessoas tenham benefícios, como ocorre em Nova York, para que possa haver uma reparação, para que possam ter incentivos para participar desse mercado. É preciso garantir o acesso pelo SUS, não só dos medicamentos feitos pelas farmacêuticas, mas também pelo óleo fitoterápico produzido a baixo custo através do sistema da Farmácia Viva do SUS, que já existe há tempos. E a gente precisa garantir o cultivo doméstico. As pessoas têm que ter o direito de poder plantar em casa de ter as suas 6 plantas fêmeas ou mais e que possam elas mesmas se abastecer para fazer seu próprio tratamento, seu próprio consumo. Se a gente conseguisse atuar em todas essas essas frentes, a gente estaria garantindo o mais amplo acesso possível. Uma pessoa que quiser plantar, pode plantar. E as pessoas que quiserem adquirir numa farmácia ou fazer uma importação, ou se associar a uma associação, têm toda essa possibilidade. Se quiser investir num produto feito por uma grande farmacêutica, ok. Mas também que possam fazer uso de produtos de pequenas empresas, microempresas; que a gente possa ter toda uma visão de que essas startups, desse grande mercado começa a se abrir em todo mundo, sejam nas favelas, sejam as lajes verdes, na Favela da Maré, na Marginal do Tietê. E que possam retornar benefícios para essas comunidades. E o fato da maconha ter muitas genéticas diferentes favorece isso, porque permite um mercado com muitos nichos diferentes, em que muitas organizações, CNPJs diferentes, CPFs diferentes possam produzir e atender essa demanda que é tão variada.

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A legalização da cannabis é também uma oportunidade de mercado?

SR: Gigantesca. A maconha é uma commodity importante no século XXI. O Brasil é um país que tinha que estar liderando isso. Eu fico batendo nisso: O Brasil importar o insumo IFA, à base de cannabis, é a mesma coisa que a gente importar macaxeira. Não tem sentido. O Brasil tem tamanho, tem solo, tem terra, tem água e tem jardineiras e jardineiros muito, muito experimentados. E poderia estar nesse momento atendendo muito bem essa demanda interna. Hoje estima-se que haja 400 mil pessoas fazendo uso de algum medicamento à base de cannabis no Brasil. Isso parece muito, mas é muito pouco comparado com o tamanho da população brasileira. E o Brasil poderia nesse momento não só atender essa demanda, mas estar fornecendo para os países. O Lula foi recentemente à Colômbia, que tratou da questão da cannabis medicinal e é um país que está bem mais avançado, já tem um marco legal para para esse mercado funcionar e que está, na verdade, exportando medicamentos à base de cannabis.

O que o Brasil perde hoje se não enfrentar essa questão da cannabis de maneira adequada?

SR: Perde saúde, porque a população não tem acesso a um medicamento extremamente eficaz, barato, com poucos efeitos adversos, grupos de risco restritos. Então a população perde porque não tem acesso. A ciência perde porque a gente tem dificuldades de avançar no conhecimento científico, dificuldade de obter os reagentes necessários, que são importados na sua maioria, e a gente não pode produzir no Brasil. Acho que a sociedade como um todo perde porque a guerra às drogas faz mal até para quem não consome quaisquer drogas. Uma pessoa que nunca pensou em fumar um baseado, ela pode tomar um tiro na cabeça por causa de um conflito entre militares e os comerciantes varejistas de maconha. E esse conflito não tem como se encerrar por meio de uma vitória militar. Ele precisa se encerrar pelo fim da proibição. A gente teve um exemplo muito claro disso na Lei Seca nos Estados Unidos. O caminho para resolver toda aquela violência não era investir em mais armamentos e mais policiais, e sim dizer “olha, isso aqui é uma substância que precisa ser legalizada, que tem as pessoas que precisam ser protegidas, tem de ter controle de qualidade e o Estado pode garantir isso”. Para garantir que aquele etanol não tenha metanol, por exemplo, como era comum acontecer quando as pessoas faziam destilações caseiras. E trazer aquilo está na realidade assim. Se existe um mercado, se existe gente querendo comprar e gente querendo vender, então você tem que regular, cobrar imposto. O competidor não pode eliminar o outro por força física. Enfim, a gente tem de trazer isso para o âmbito da racionalidade.

As pessoas ficam mais inteligentes quando ficam doentes?

SR: Eu escrevi “As Flores do Bem” para aqueles e aquelas pessoas que já têm uma opinião formada a favor de legalizar a maconha, para que essas pessoas tenham mais argumentos para fazer esse debate. E, por outro lado, para essas pessoas que têm opinião contrária ou que não tem opinião formada, para que elas possam se capacitar para fazer escolhas inteligentes antes desse momento em que todo mundo parece que tem facilidade de mudar, que é o momento da doença. Quando a pessoa encontra uma doença, seja dela própria ou da sua família, de membros da sua família e amigos, normalmente ela se despe de preconceito. Ela fica curiosa e corajosa. Ela quer saber o que pode ajudar. Quando ela entende que a maconha é uma porta importante de tratamento para muitas doenças diferentes, ela normalmente quer esse medicamento para si ou para as pessoas que ela ama. E eu já vi pessoas muito conservadoras, pessoas que passaram décadas fazendo um combate virulento da maconha, com um pânico moral enorme, essas pessoas rapidamente mudam de ideia. Então, eu cito uma frase do Felipe Farias, um ativista aqui do Rio Grande do Norte, da Reconstruir, que é “não espere precisar, para ser a favor”. Então, uma proposta do “Flores do Bem” é que ele seja um caminho para que a pessoa mude de ideia antes de precisar. ◼️

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