Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Opinião Geraldo Pinheiro: especialidades médicas, a verdade e a ética

O texto que abro à população é um convite para essas pessoas a estudarem mais e se dedicarem à preparação para aquela especialidade que pretendem executar

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 2 de julho de 2025 às 08:00

Nos tempos atuais, há uma discussão que permeia o mundo médico: a formação de especialistas. O percurso tradicional para formação de especialistas é o seguinte: o sujeito, depois de concluída a graduação em Medicina (que dura 6 anos), deverá fazer um tipo de pós-graduação, chamado residência médica, na área em que deseja se especializar. Cada especialidade tem a sua residência específica, seu tempo de duração específico e os pré-requisitos específicos. Por exemplo, especialidades como dermatologia, neurologia e psiquiatria têm, como único pré-requisito, a graduação em medicina e, cada uma, dura 3 anos de formação. Ou seja, para um indivíduo se formar em dermatologia (ou neurologia, ou psiquiatria), são necessários 9 anos de preparo (6 anos para se formar médico e mais 3 no processo de especialização). Já cardiologia, endocrinologia e nefrologia são situações diferentes.

Esses três exemplos exigem, como pré-requisito, além da graduação em medicina, uma residência em clínica médica. Depois de concluída a residência em clínica médica – que dura 2 anos – aí sim o profissional poderá ingressar na formação daquelas especialidades. Cada uma daquelas residências dura mais 2 anos. Então, para que um indivíduo se forme cardiologista, ou endocrinologista, ou nefrologista, serão necessários 10 anos de preparo (6 anos de graduação, 2 anos de residência de clínica e mais 2 anos na última especialização). Algo semelhante ocorre na formação do urologista. Para fazer essa especialização, são necessários 10 anos também porque, antes de fazer a residência de urologia, é necessário que o indivíduo seja médico e formado na residência de cirurgia geral (esta última dura 2 anos). É claro que o que acabamos de descrever neste parágrafo não esgota todas as possibilidades de especializações médicas; nós demos apenas alguns exemplos.

Como dissemos no parágrafo acima, esta descrição é a do percurso tradicional de formação de especialistas. Quando este indivíduo conclui esse percurso de forma integral, ele deve se dirigir ao Conselho Regional de Medicina (CRM) da Unidade Federativa em que pretende trabalhar, apresentar toda a documentação que comprove os processos pelos quais passou, para que o CRM, junto ao Conselho Federal de Medicina (CFM), certifiquem que o mesmo é especialista naquela área. Um número então será gerado para esse médico referente à especialização que ele concluiu; tal número é chamado RQE: registro de qualificação de especialista.

Entretanto, algumas sociedades de especialidades permitem uma outra trajetória para a obtenção do RQE. Nesse outro percurso, há certa variação entre o que uma ou outra sociedade de especialidade vai exigir como pré-requisito mínimo para a obtenção do RQE. Porém, em linhas gerais, são exigidas as seguintes condições: que o indivíduo faça um curso na área em que deseja; que ele comprove um certo tempo mínimo de trabalho supervisionado na área em que deseja; e que ele obtenha uma certa nota mínima numa prova (a chamada prova de título), elaborada pela sociedade de especialidade em questão. Como dissemos, nessa outra trajetória, se o indivíduo conseguir reunir esses pontos citados, ele conseguirá o RQE e será considerado, pelo CFM, especialista na área.

Algumas pessoas criticam essa outra trajetória para obtenção de especialidade. Essas pessoas dirão que a formação do especialista deveria ser sempre através da residência médica. O principal motivo para esse tipo de argumento é que é apenas na residência médica – em que o indivíduo é submetido a um regime de trabalhos e estudos de 60 horas semanais, incluindo atividades práticas repetidas e supervisionadas por preceptores, com grandes volumes de atendimentos – em que o indivíduo realmente tem uma preparação minimamente satisfatória. A residência médica, sempre vinculada a uma instituição de ensino, garantiria que esse indivíduo estivesse sempre engajado com a sua formação.

É verdade que a trajetória alternativa aqui descrita para a obtenção do RQE é um caminho menos exigente, no sentido em que não há uma vinculação necessária a uma instituição, não há supervisão contínua, não há vinculação necessária a atividades de cunho científico e há a fragilidade de avaliação que uma prova escrita pode oferecer ao dizer que um indivíduo está ou não preparado. Mas também é verdade que nem todos os serviços de residência médica oferecerão formações perfeitas. É claro que, para podermos dizer que este ou aquele especialista é bem preparado, teríamos que analisar detidamente como se deu todo o processo de formação (por uma ou por outra trajetória) e, além disso, estudarmos com atenção suas práticas atuais. Nunca poderemos dizer, sem fazer tal avaliação, que só por ter feito residência médica este profissional está plenamente preparado ou que aquele indivíduo, que não foi submetido a uma residência médica, não está devidamente formado para ser um especialista. Mas também é verdade que as chances de um indivíduo, que foi submetido a um programa de residência médica, estar mais preparado é maior do que aquele que não foi.

Depois de todo esse preâmbulo, queremos dizer agora que, na verdade, a grande discussão, a que nos referimos no início desse texto, nem é essa (sobre se uma ou outra trajetória é ou não adequada à formação do especialista; embora compreendamos, em nossa opinião pessoal, que tal discussão também devesse ocorrer). O debate que se põe nos tempos atuais nos meios médicos diz respeito a algumas pessoas que não seguiram nenhuma das duas trajetórias e saem dizendo por aí que são especialistas. Sim, caro leitor, existem essas pessoas. Elas são pessoas que não fizeram residência médica. Geralmente, elas fazem um curso relacionado àquela especialidade e se sentem prontas para exercer a especialidade. Claro que, por esse caminho, não conseguem obter o RQE. Então, oficialmente não são especialistas; aos olhos do CFM, não são especialistas. Todavia dize que são. E é claro que a sociedade leiga não está preparada para avaliar se este profissional, que está à sua frente, é ou não um especialista de verdade – isto é, detentor de um RQE.

Pessoalmente, acredito que algumas dessas pessoas (estou me referindo agora às pessoas que não têm RQE) serão extremamente estudiosas, terão boa fé em ajudar as pessoas, em fazer um bom atendimento e terão todas as outras qualidades esperadas de um bom profissional. Entretanto, numa sociedade que pretende ser minimamente organizada, regras devem existir e ser observadas e essas pessoas estão fora da regra e, se estão fora da regra, cada indivíduo que será atendido por cada um desses profissionais está sob risco maior de ser atendido por um profissional desqualificado. Claro que também existe o demérito da mentira – isto é: dizer que é especialista sem ser.

Mas, para além da mentira, existe o risco de, como consequência de uma possível má preparação (ou até ausência de preparação), o paciente receber diagnósticos equivocados e condutas terapêuticas também incorretas. O presente texto não propõe uma briga com esse grupo de pessoas que age assim. Não se trata disso.

O texto que abro à população é um convite para essas pessoas a estudarem mais e se dedicarem à preparação para aquela especialidade que pretendem executar. Façam uma residência médica. Dediquem-se, ao longo de 3 ou 4 anos (ou até mais para algumas especialidades), além dos seus 6 anos de formados, ao atendimento contínuo e supervisionado às pessoas doentes, sejam submetidos ao conhecimento científico mais seguro, a preceptores atenciosos, estejam inseridos em serviços e instituições de ensino sérios que permitam que vocês possam se engajar nos seus estudos. Este é o meu pedido sincero. Façam isso e, aí sim, voltem-se para a sociedade e digam a plenos pulmões que são especialistas e que nunca pararão de estudar para atender mais e melhor às pessoas que sofrem.

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