Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo Geraldo Pinheiro: O que podíamos ser depois

A expressão “o que podia ser depois” não está se referindo à “destruição”. Não se está querendo dizer que a destruição (o encerramento do caso), em vez de ter sido hoje, podia ter sido depois

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 22 de abril de 2025 às 18:15

Quando eu era criança, a minha casa em Mirassol era recheada por música. A minha mãe principalmente gostava muito de ouvir um estilo de música que ficou conhecido como época de ouro, que se seguiu a uma próxima fase, que é a chamada pré-bossa. Nelson Gonçalves, um dos grandes cantores dessa época, era o preferido dela.

Dele, tinha vários discos de vinil – os LPs – que me encantavam com suas ilustrações de capas e com suas melodias sinuosas. Eu aprendi a gostar de música com a minha mãe, ouvindo Nelson Gonçalves. Eu desenvolvi o interesse em aprender a tocar violão a partir da musicalidade que permeava a minha casa, oriunda das cantorias à capela executadas por ela, mas sobretudo pelas ondas sonoras promovidas por aquela caixa de madeira – uma radiola RCA Victor – que tocava os discos de Nelson.

O meu curso de violão, iniciado aos 10 anos de idade, promovido pelo meu queridíssimo tio e Padrinho Chico, foi salpicado intensamente por músicas dessa época; de uma época que não era a minha, nascido em 1978. Mas que, embora não fossem as músicas da minha geração, aprendi a apreciá-las e ainda hoje aprecio. É claro que não fiquei por aí. É claro que descobri a existência de pessoas como Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Morais dentre outros maravilhosos e maravilhosas.

E, nos tempos atuais, as músicas dessas pessoas me encantam mais do que as que me iniciaram na música, mas, com não pequena frequência, revisito aquelas canções, tocando a lembrança da minha mãe; revivendo a minha mãe… E foi, numa dessas lembranças, que me voltei à música “Tudo acabado”, de José Piedade e Oswaldo Martins. Essa música está incluída no disco “Nelson até 2001”, um dos presentes na coleção de dona Claudete. Abaixo, colocarei a letra desta música.

“Tudo acabado entre nós / Já não há mais nada / Tudo acabado entre nós / Hoje de madrugada / Você chorou e eu chorei / Você partiu e eu fiquei / Se você volta outra vez / Eu não sei / Nosso apartamento agora / Vive à meia-luz / Nosso apartamento agora / Já não seduz / Todo egoísmo / Veio de nós dois / Destruímos hoje / O que podia ser depois.”

Acho belíssima essa música, gosto de me envolver com ela, de sonhar com ela e chorar com ela; sobre o que podia ter sido e não foi. Porém, confesso que os seus últimos versos sempre me causaram estranheza, fruto de uma interpretação que eu tinha. Essa minha interpretação – a qual estava errada – gerava em mim uma inquietude.

Toda a música é um lamento sobre o fim de um relacionamento. Ao final, é dito que “destruímos hoje o que podia ser depois”. Sempre achei estranho se fazer uma contraposição entre a destruição (do relacionamento) de hoje e de depois. Ora, seria mais interessante que não houvesse destruição alguma: nem hoje, nem depois. Dessa forma, embora gostasse bastante da música, nunca concordei com esses últimos versos, pois os achava simplórios. Repito: para mim, é muito pouco garantirmos que o fim do relacionamento somente aconteceria depois (e não hoje); bom mesmo era que o relacionamento não se encerrasse nunca.

Foi só recentemente que eu percebi que essa minha interpretação estava equivocada; não é isso que a música quer dizer. A expressão “o que podia ser depois” não está se referindo à “destruição”. Não se está querendo dizer que a destruição (o encerramento do caso), em vez de ter sido hoje, podia ter sido depois. Em vez disso, a expressão “o que podia ser depois” se refere a um possível futuro. Dando um exemplo, é semelhante a quem diz: “nossa situação atual é difícil, mas não sabemos o que pode ser depois”. Então, a destruição que aconteceu hoje eliminou a possibilidade de um futuro, quem sabe, feliz, amoroso, radiante, intenso, emocionante…

Aqui não estamos cantando a música; estamos conversando sobre um pequeno trecho dela. E todas as músicas têm os seus ritmos. E a construção melódica e de letra deve se encaixar com essa ritmicidade. Dessa forma, não é nem um pouco adequado sugerir modificações na obra do artista. Porém, ao mesmo tempo, não querendo agredir a obra de arte, não querendo profanar o sagradíssimo composto musical, mas tentando retirar a ambiguidade da construção, poderíamos dizer: “destruímos hoje o que podíamos ser depois”.

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