Implantação da tarifa zero no transporte público de Natal custaria algo em torno de R$ 178 milhões. Foto: Everton Dantas/NOVO Notícias
Segundo avaliação de Giancarlo Gama, o sistema de transporte público na capital do RN vive o mesmo cenário de crise existente em muitas outras cidades brasileiras e — se nada for feito — vai acabar colapsando
Publicado 23 de junho de 2025 às 15:30
O especialista em sistemas de transporte público Giancarlo Gama, fundador do Instituto Jevy Cidades, que ajuda municípios na implantação da gratuidade do transporte público, produziu um estudo básico mostrando que Natal pode ter tarifa zero no transporte público. E que isso custaria 3% das receitas anuais, algo em torno de R$ 158,7 milhões.
Para dar uma ideia desse valor, basta citar que os auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RN) encontraram pelos menos R$ 281,6 milhões que podem ser economizados pela Prefeitura de Natal caso a minuta para a licitação dos transportes públicos na capital seja revisada.
Na avaliação dele, o sistema na capital do RN vive o mesmo cenário de crise existente em muitas outras cidades brasileiras e — se nada for feito — vai acabar colapsando. Confira abaixo a entrevista feita com ele na qual ele detalha melhor os ganhos e desafios dessa ideia.
Como foi feito o estudo sobre o sistema de Natal?
O estudo técnico na cidade de Natal é um estudo técnico simplificado. Ele foi feito no âmbito do programa Mobiliza Tarifa Zero. Então a Jevy Cidades lançou no começo desse ano um programa chamado Mobiliza Tarifa Zero. Queria ajudar mandatos de vereadores e vereadoras do Brasil inteiro a pautar a discussão da tarifa zero, por meio de um curso que foi realizado com o tema de tarifa zero, de mudanças climáticas, de justiça climática. E o mandato da vereadora Brisa Bracchi (PT) participou e foi lá que nós nos conectamos. Ao final desse programa, a Jevy iria produzir um estudo técnico simplificado, estimando quanto custaria a tarifa zero no contexto dessas cidades, a partir de uma metodologia própria que a Jevy desenvolveu. E foi aí que nós fizemos esse estudo. Esse estudo, ele se baseia no modelo, eh, que dá a viabilidade à política de tarifa zero nas cidades que implementam hoje. Então, cidades que dão viabilidade à gratuidade no Brasil hoje, elas transicionaram do modelo que remunera as empresas que prestam o serviço por passageiro por quilômetro, que é o IPK, e foram para um modelo de remuneração que remunera pelo serviço executado, pelo serviço prestado. Então, essas cidades que deram viabilidade à gratuidade, elas estabelecem um valor por quilômetro e remunera essas empresas por esse valor por quilômetro, e dentro desse valor por quilômetro, ele tá incluso os custos de operação dessas empresas e também, eventualmente, algumas das, das cidades, a taxa de remuneração dessas empresas. O que que isso faz na prática? Isso faz com que a prefeitura pague pelo serviço prestado e não pelos lucros da empresa ou coisas nesse tipo, o que é o mais justo e o mais eficiente, sob uma perspectiva da administração pública e de dar sustentabilidade ao sistema.
Por que o sistema de transporte no Brasil vive uma crise?
O sistema no Brasil inteiro vive em crise porque é um sistema que depende altamente da tarifa. Para contexto, o Brasil tem uma cultura histórica de não investimento público para o financiamento do transporte público. É importante lembrar que o transporte é um direito básico constitucional, assim como saúde e educação. No entanto, na maioria das cidades no Brasil, mais de 95% delas, essas cidades dependem exclusivamente da tarifa, da receita tarifária, para financiar a política de transporte público de forma geral. Só que historicamente — e ampliado aí pela pandemia — o número de pessoas no sistema de transporte público diminuiu. Então a receita gerada nesse sistema diminuiu drasticamente, o que tem feito com que cidades colapsem no seu sistema de transporte público. Então, depender da tarifa é um modelo completamente inconsistente. Por isso que sair desse modelo tarifário, centrado na quantidade de passageiros que estão no sistema e ir para um modelo que remunera pelo serviço executado é o caminho que pode dar a sustentabilidade financeira para qualquer sistema de transporte público e para a gratuidade.
Você defende que é possível implantar a tarifa zero em todas as cidades do Brasil. Como seria possível isso em Natal?
A minha avaliação do sistema de Natal é que está nesse cenário de crise e que se nada for feito, vai colapsar. A tarifa só vai aumentar, porque na medida que o número de pessoas diminui, as empresas e a prefeitura acabam aumentando a tarifa para que a empresa volte a ter a receita que ela tinha antes de perder a quantidade de passageiros. Só que com o aumento da receita e ao mesmo tempo que a empresa também diminui a qualidade do sistema para ter menos gastos, com uma tarifa mais alta e com um sistema de pior qualidade, as pessoas deixam ainda mais de usar o sistema de transporte público. E isso faz com que a tarifa aumente ainda mais, a qualidade piore. Então, isso é o que a literatura chama de “ciclo vicioso da tarifa”, que é o que está acometendo Natal. Fora a baixa efetividade, o baixo acesso das áreas da cidade pelo transporte público, especialmente áreas periféricas. A minha avaliação é que é um sistema que caminha para o colapso e que se nada for feito, ele pode piorar, e que já não atende as demandas de mobilidade da cidade. É 100% possível implementar tarifa zero em Natal. Em qualquer cidade do Brasil é possível implementar a gratuidade. Essa é a mesma visão que a gente tinha, por exemplo, quando o Brasil instituiu o Sistema Único de Saúde. Era uma grande questão: será que tem como fazer um sistema público de saúde? E hoje a gente tem um sistema que — obviamente precisa de melhorias — mas nós temos. Então, agora a gente está num momento muito paradigmático, assim, de mudança do sistema de transporte público no Brasil, porque as cidades que não fizerem tarifa zero vão ficar para trás. Porque a gente tá num cenário de colapso, e a gente é o país hoje com o maior número de cidades com transporte público gratuito. A gente é o país no mundo com a maior quantidade de gratuidade, a gente está caminhando para um cenário de, de fato, estabelecer um sistema de transporte público gratuito.
Quanto custaria em Natal?
Em Natal é 100% possível, como a gente postou no estudo técnico. A gente chegou a um resultado de aproximadamente 3% da receita municipal seria necessário para dar viabilidade à gratuidade, a um sistema com qualidade, com ampliação da frota. É, quando a gente compara, por exemplo, com os gastos de saúde e educação,que são 15, 20% da receita municipal, 3% é algo muito viável para uma cidade bastante rica como Natal. E se não for o caminho financiar diretamente apenas com recursos do próprio município, existem caminhos para gerar receita municipal para conseguir, é, enfim, financiar a gratuidade. Então, tem caminhos possíveis. O que eu percebi na minha tese de mestrado na Universidade de Oxford, que recebeu a nota máxima, inclusive, foi que a viabilidade da tarifa zero não se dá por motivos financeiros; não é por motivos técnicos. Ela é resultado de vontade política. Na prática, ela é sobre vontade política. É uma política pública que precisa ser priorizada dentro do orçamento.
Por que há tanta dificuldade em implantar a tarifa zero?
Eu acho que tem uma camada de estigma dos gestores e dos políticos de forma geral ter essa cultura de que o sistema de transporte público precisa ser pago pra, pra ser, para que as pessoas tenham acesso. Acho que o principal é ter uma mudança de paradigma de entender o transporte como direito e não como um serviço. Mas a gente está olhando para um cenário de muitas cidades com endividamento, muitas cidades que não têm tanta flexibilidade orçamentária. Para construir um sistema de transporte público de qualidade, é muito importante que se tenha recurso público. E algumas cidades têm um pouco menos de flexibilidade com isso e até menos flexibilidade de gerar receita. Então, por isso tem bastante dificuldade para viabilizar a gratuidade.
Como especialista no assunto, na sua opinião, o que explica uma cidade como Natal não ter um processo de implantação de tarifa zero?
Eu acho que é fundamental a gente discutir novamente e falar que é 100% possível ter tarifa zero em Natal. Eu acho que o que faz com que o debate não avance tanto é a falta de vontade política dos gestores municipais. Eu acho que isso é muito importante estar na mesa. A política de tarifa zero não é sobre viabilidade técnica, nem orçamentária, é sobre vontade política e sobre a capacidade do gestor de colocar e posicionar o transporte público gratuito como prioridade e entender que a política de tarifa zero é uma política de desenvolvimento econômico, é uma política fundamental para os outros direitos básicos como saúde e educação. Porque, se eu tenho que pagar para ir para o médico, eu não tenho o meu direito à saúde garantido. Se eu tenho que pagar para ir pra escola ou pagar o ônibus para ir pra escola, eu não tenho meu direito à educação garantido. Então, a tarifa zero, transporte público gratuito, ele é uma política de desenvolvimento econômico. A gente vê cidades no Brasil aumentando suas arrecadações a partir da política de tarifa zero. Ela é uma política garantidora de outros direitos. Então a gente precisa olhar para a política de tarifa zero como um investimento e não como um custo público.
Existe alguma cidade do porte de Natal que tenha ou esteja implantando tarifa zero no Brasil?
Hoje a maior cidade implementando algum tipo de gratuidade é a cidade de Teresina, no Piauí, com um pouco mais de 800 mil habitantes, que implementa a gratuidade no sistema de metrô. Existem outras cidades discutindo a tarifa zero, como a cidade do Rio de Janeiro, a cidade de Santo André. O Rio de Janeiro é bem maior que Natal, mas Santo André tem uma população bastante parecida com Natal. Então tem cidades debatendo. Ainda não tem nenhuma implementando no sistema de ônibus, assim como Natal, mas como eu falei, várias estão debatendo. Então acho que é uma questão de tempo para que a gente tenha cidades no Brasil, acima de 1 milhão de pessoas, implementando a tarifa zero. Nós temos hoje Belgrado, que é uma cidade de mais de 1 milhão que implementa tarifa zero, e várias outras com mais de 800 mil que implementam a gratuidade.

É cientista político de formação, pela USP e mestre em políticas públicas pela Universidade de Oxford, onde se especializou na implementação da política de tarifa zero no Brasil. Ele desenhou um manual de implementação da tarifa zero a partir de entrevistas com os prefeitos e gestores de algumas cidades que implementam a gratuidade, assim como o trabalho de campo.
Foram seis cidades visitadas no Brasil e duas na Europa: a cidade de Tallinn, na Estônia, e a cidade de Belgrado, na Sérvia, que é a maior cidade no mundo hoje com a política de tarifa zero. Visitando essas cidades e construindo esse conhecimento sobre a implementação da política de tarifa zero, ele fundou uma organização sem fins lucrativos chamada Jevy Cidades (jevycidades.br), que atua ajudando as cidades no Brasil a melhorar o seu sistema de transporte público, inclusive com a tarifa zero.
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