Psiquiatra Geraldo Pinheiro comenta o fenômeno das bets e seus efeitos

Psiquiatra Geraldo Pinheiro comenta o fenômeno das bets e seus efeitos

Opinião

Artigo As bets e os novo adictos

O fenômeno das bets, com suas propagandas apelativas, infelizmente vem pra ficar. O poder financeiro que eles salientam limita qualquer tipo de argumentação por mais bem-intencionada e correta que seja

por: Geraldo Pinheiro, psiquiatra

Publicado 27 de novembro de 2024 às 15:46

Para quem tem mais de 40 anos, não é difícil lembrar as “saudosas” propagandas de cigarro. Homens altos, belos e bem-sucedidos, acompanhados por mulheres luxuriantes, de cabelos sedosos, desfilavam em cenas quase hollywoodianas portando cigarros ora nas mãos, ora nas bocas e é claro que essas imagens e sugestões de alto desempenho exerciam forte influência na mente dos possíveis consumidores de cigarro.

“Todos” queriam ser como aquela personagem impactante e a indústria do cigarro acreditava (com razão) no fenômeno da imitação e, desta forma, teve grande sucesso de vendas. Porém, o tempo passou e a compreensão sobre os danos do cigarro – tanto os mentais como os não-mentais – se avolumaram de evidências científicas e leis foram desenvolvidas para paulatinamente tais propagandas desaparecerem.

Fenômeno semelhante ocorreu com as bebidas alcoólicas. É claro que, neste nicho, o apelo sexual também teve forte participação propagandística. Todavia, de forma semelhante ao que aconteceu com o cigarro, também surgiu uma legislação que coibiu a veiculação de certas propagandas com alto teor ilusório ao consumidor.

O cigarro contém milhares de substâncias nocivas ao organismo humano e a nicotina é uma destas substâncias. Ela é a responsável pela dependência química relacionada ao cigarro. O álcool, de forma semelhante à nicotina, também tem potencial de causar dependência química. A dependência química (conceito que será melhor abordado em um outro artigo) não é o único problema relacionado a essas substâncias.

Existe uma série de outras consequências nocivas relacionadas ao uso que podem estar presentes mesmo em quem não desenvolve o fenômeno da dependência. Embora seja verdade que, a depender da predisposição genética de cada um, história de vida (incluindo história de relacionamentos sociais, traumas, criação e relação com os pais, etc) e do padrão de consumo dessas substâncias, haverá usuários que não desenvolverão o fenômeno da dependência e nem enfrentarão problemas devido a elas. Porém, já está mais do que demonstrado o alto potencial lesivo para a vida dos seres humanos que elas carregam.

Nos tempos atuais, surgiu uma outra “substância” para colorir as propagandas. Astros do esporte, influenciadores bem sucedidos, personagens conhecidas e tidas como de alto valor social, pululam as propagandas, tentando nos convencer a investir o nosso tempo e dinheiro em jogos online e nas bets (termo originário do verbo inglês to bet, que significa apostar). É claro que o cenário não é o mesmo das propagandas da década de 80 do cigarro, nem de bebidas; a assim chamada pós-modernidade exige que tais “aperitivos” sejam atualizados.

O conceito de bem-sucedido se revira e os personagens também, mas a ideia é a mesma de sempre: convencer o possível consumidor de que o produto que está sendo ali vendido é importante para a sua vida. A estratégia de sugestão de imitação daquelas personagens bem-sucedidas é um caminho que a indústria de marketing há tempos sabe que é eficaz para vender.

O que talvez algumas pessoas não saibam é que o jogo de apostas (e não apenas o jogo de apostas, mas também o jogo recreativo) pode se tornar um problema. Aliás, a Associação Americana de Psiquiatria e a Organização Mundial da Saúde, em seus respectivos documentos – Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais (na sua quinta versão, DSM-5) e Classificação Internacional de Doenças (na sua décima primeira versão, CID-11) – elaboram capítulos para essa desordem: o assim chamado “transtorno do jogo”.

Dentre todos os problemas possíveis, acredito que, para o público em geral, não é difícil perceber, ao menos, a possibilidade de alguém se endividar com o uso compulsivo (desorganizado) dos jogos com aposta. Talvez o leitor até conheça uma ou outra história.

Entretanto, assim como o álcool e o cigarro podem trazer problemas além dos sociais, o transtorno do jogo também pode fazê-lo. Há algumas décadas que os neurocientistas se debruçam sobre o assunto. Já está bem estabelecido que o comportamento cerebral – em nível de redes de células e em nível bioquímico – de quem faz uso de cigarro e de álcool é muito semelhante ao de quem joga compulsivamente.

Cada vez mais, a neurociência compreende que o jogo patológico promove efeitos semelhantes aos provocados por uma substância geradora de adicção (dependência). Fenômenos como tolerância (necessidade de usar doses cada vez maiores para poder experimentar o efeito da substância) e síndrome de abstinência (conjunto de sinais e sintomas relacionados à suspensão do uso de determinada substância), tão comuns no cigarro e no álcool, também estão presentes nos transtornos do jogo.

Dentre outras, há ainda uma semelhança fundamental: a fragilidade dos períodos de vida chamados infância e adolescência. Nesse momento da vida do ser humano, em que o cérebro, sobretudo em seu nível bioquímico e microarquitetural, ainda está em desenvolvimento, há um maior risco de tais exposições causarem danos ainda mais graves; o risco de dependência é consideravelmente maior.

O fenômeno das bets, com suas propagandas apelativas, infelizmente vem pra ficar. O poder financeiro que eles salientam limita qualquer tipo de argumentação por mais bem-intencionada e correta que seja. Inclusive, já há grandes clubes de futebol brasileiros que recebem patrocínios altíssimos desses grupos de forma que eles já conseguiram ser indispensáveis para tais clubes.

Contudo, há muito o que se fazer! Compreender que o jogo pode se tornar um transtorno, um comportamento patológico é fundamental; psicoeducar pais sobre os riscos prementes à infância e à adolescência é imprescindível; tratar os adictos é possível (existe tratamento!); prevenir, claro, sempre é melhor. Mas também há que se definir regras e leis muito rígidas para tentar diminuir os danos relacionados. Da mesma forma que tivemos algum sucesso com o cigarro e o álcool, não será impossível que, balizados pelos estudos da ciência, possamos diminuir os riscos aos “novos adictos”.

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