Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Opinião Geraldo Pinheiro – O Narciso que existe em cada um de nós

O que o mito de Narciso nos mostra é que enclausurar-se em si mesmo em certa intensidade e por determinado tempo pode trazer sérias consequências para si próprio (no caso do mito de Narciso, a morte) e para os que estão próximo também

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 30 de julho de 2025 às 19:30

“Quando eu te encarei frente a frente, não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Esses são alguns versos da belíssima música de Caetano Veloso chamada Sampa. Um pouco mais à frente na música, ele ainda diz: “afasto o que não conheço”.

Nessa música, Caetano transforma – em letra, harmonia e melodia – suas impressões, sentimentos, emoções, afetos e também estranhezas, que ele vivenciou ao entrar em contato com a cidade de São Paulo (Sampa). É claro que o saliente contraste entre o que ele saboreava no Nordeste brasileiro e a cidade de São Paulo, percebido pela personalidade sensível do artista, pavimentou a elaboração desta obra. No trecho destacado, há uma clara referência ao mito grego de Narciso.

Segundo a mitologia, quando Narciso nasceu, sua mãe procurou Tirésias – uma figura lendária na mitologia grega, conhecido como adivinho de Tebas – para saber sobre o futuro do filho. Tirésias teria dito de forma enigmática: “Narciso, dotado de extrema beleza, viverá muito a não ser que venha a se conhecer.”

Narciso cresceu, muito belo e formoso e foi despertando, ao longo de sua vida, o desejo de muitas moças e ninfas. Porém, nenhuma provocava em Narciso o desejo genuíno, o amor verdadeiro. Desprezada por Narciso, uma das muitas jovens, um dia, resolveu se vingar e, erguendo as mãos para o céu, disse: “desejo que Narciso ame também com a mesma intensidade, mas sem possuir a pessoa amada”. Esse rogo foi ouvido e atendido por Nêmesis, outra figura mitológica, responsável por punir crimes e más ações. E a forma com que Nêmesis encontrou para punir Narciso foi a seguinte.

Em um bosque, havia uma fonte límpida, cristalina, de águas calmas, da qual nenhum ser humano ou qualquer outro animal havia anteriormente se aproximado. Narciso, exausto, depois de um dia de aventuras e caças, resolveu parar ali para repousar. Inclinou-se para beber da água da fonte e viu sua própria imagem perfeitamente refletida na água. Sem compreender que aquela imagem era a do seu rosto, permaneceu imóvel, a contemplar aquela exuberante beleza e, por ela, apaixonou-se.

Por várias vezes, tentou tocar e trazer para si aquela imagem incrível. Mas, sempre que se aproximava e tocava nas águas, a imagem se desmanchava, se desfazia e assim Narciso não tinha o seu objeto de amor. Narciso permaneceu por muito tempo contemplando a própria beleza e sem conseguir abandonar aquela contemplação para perceber outras belezas que o mundo lhe oferecia.

Arrasado, desiludido por não ter o seu amor correspondido, ele se deixou permanecer ao lado da fonte, sem se alimentar, evoluindo para a morte. De certa forma, cumpriu-se a profecia de Tirésias: Narciso morreu ao se conhecer (ou ao contemplar a própria face). E o castigo imposto por Nêmesis também
se cumpriu: afinal, Narciso não foi correspondido no seu amor…

Quando Caetano Veloso chega a São Paulo, ele encontra uma sociedade com uma cultura muito diferente daquela a que ele estava acostumado. Isso feriu o Narciso que havia nele e ele “achou feio o que não era espelho”. Todos nós temos um pouco de Narciso na estruturação da nossa personalidade. É natural estranharmos o que é diferente de nós. A tendência é normalmente a de nos afastarmos do que é novo, do que é diferente, daquilo que não reflete a nossa forma de ser. É claro que a intensidade com que isso acontece varia de uma pessoa para outra.

Todavia, por outro lado, haverá aquelas que conseguem superar o estranhamento e, fazendo um movimento contrário, absorverão o novo, aprenderão com ele, e acrescentarão a imagem não-narcísica ao seu repertório de valências.

Até certa medida, o Narciso que existe em cada um de nós é esperado, saudável, serve até como mecanismo de defesa. Entretanto, o que o mito de Narciso nos mostra é que enclausurar-se em si mesmo – a despeito dos estímulos externos e a despeito das relações humanas que podem ser vividas – em certa intensidade e por determinado tempo pode trazer sérias consequências para si próprio (no caso do mito de Narciso, a morte) e para os que estão próximo também.

No próximo texto, falaremos dos problemas advindos do “exagero do Narciso”. Abordaremos o que a Psiquiatria moderna chama de Transtorno da Personalidade Narcisista.

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