Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo Geraldo Pinheiro: Psiquiatria para além da tecnologia

Não encontramos a depressão de um paciente em nenhum exame laboratorial. A depressão não aparece nos exames de imagem

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 21 de julho de 2025 às 15:15

Os médicos estão acostumados a comprovar a existência de uma doença através de um exame complementar. É claro que, nos primórdios da medicina e ao longo de muitos anos (na verdade, a maior parte da história da medicina), não havia esse recurso – exame complementar. Não havia como examinar o sangue das pessoas, sua urina, não havia o exame de radiografia, muito menos tomografia computadorizada ou ressonância magnética, dentre outros. E, mesmo nos dias de hoje, em muitas localidades do Brasil e do mundo, tais recursos não são facilmente disponíveis. Entretanto, mesmo com esse histórico e com essas dificuldades atuais, a existência de exames que comprovem determinada doença é conhecida.

Se uma pessoa estiver com uma pneumonia, uma radiografia dos pulmões vai mostrar a lesão (os sinais radiográficos sugestivos da infecção); se uma pessoa for portadora de uma hérnia de disco, uma ressonância magnética da coluna mostrará a evidência da hérnia; se uma pessoa tiver diabetes mellitus, o exame de sangue mostrará a elevação da glicemia. Mesmo que as pessoas, por alguma limitação imposta, não tenham acesso a essas informações, elas sabem que tais informações existem.

Sabem que, se fizerem este ou aquele exame, o seu processo de adoecimento será comprovado.

Além dos médicos, a população também está acostumada com isso. A comprovação de uma doença por exames complementares permite que, dentro de certos limites e eliminando os erros, não reste dúvida sobre o diagnóstico. Isso gera segurança de se saber o que se tem e também legitima o tratamento, pois espera-se que o médico saiba o que está fazendo, em termos de tratamento, já que o diagnóstico está respaldado por um exame complementar. A comprovação via exame complementar torna a doença concreta no imaginário popular. Não há como negar que ela existe. A evidência salienta-se. Mais que se dizer doente, o exame fala por si. É claro que ninguém quer estar doente; portanto, ninguém quer ter essa comprovação com um exame complementar acusando determinada enfermidade. Contudo, o que se está discutindo aqui não é isso. O que queremos dizer é que o exame complementar, além de respaldar a opinião do médico e confirmar a sua suspeita, também não deixa margem para a dúvida: “sim, tenho este diagnóstico, tenho esta doença, o exame mostrou” – este é um pensamento possível da pessoa que recebe essa informação.

Isso é verdade para a maioria das especialidades médicas. Entretanto, não o é para a psiquiatria – pelo menos, até o momento…

Não encontramos a depressão de um paciente em nenhum exame laboratorial. A depressão não aparece nos exames de imagem. Como os exames comprovam as doenças de toda a medicina, é natural que a psiquiatria, sendo uma exceção, cause estranheza. E, na verdade, mais do que estranheza, desconfiança.

Na prática clínica psiquiátrica, é muito comum nos depararmos com os familiares do paciente, que não compreendem o padecimento daquele indivíduo. Comentários do tipo: “ele tem tudo e está aí dizendo que é deprimido”; “tanta gente passando fome e ele aí chorando, sem querer fazer nada”; “tenha fé em Deus; você está assim porque se afastou de Deus”. Essas declarações, além de revelarem uma total incompreensão do processo de adoecimento devido a um transtorno mental, ainda machucam o sujeito que está deprimido porque soam como uma verdadeira acusação. O próprio paciente se sentirá como um culpado por estar daquele jeito; parece que “ele está assim porque quer”.

O parágrafo acima exemplificou o caso da depressão (preferi esse exemplo porque considero bastante emblemático), mas situações semelhantes se repetem em outros transtornos mentais. Vejamos ainda um outro exemplo: esquizofrenia. Nessa condição, é comum o paciente ter delírios, que são percepções equivocadas da realidade. Muitas vezes, o indivíduo vai se perceber perseguido por um grupo que quer fazer algum mal com o mesmo. Ele tem comportamentos, atitudes, coerentes com essa percepção: fecha acirradamente as portas e janelas da casa; considera a possibilidade de fugir e, algumas vezes, foge para escapar do suposto perigo (para ele, tal perigo é real); fala com os familiares sussurrando para que “as escutas implantadas” não captem suas declarações. De forma paralela ao que acontece com a depressão, o familiar, não raras vezes, entende que o paciente está “mentindo” ao falar aquelas coisas. Não, não é uma mentira. A mentira ocorre quando, mesmo sabendo o que é a verdade, falamos uma inverdade. O paciente portador de esquizofrenia não sabe o que é a verdade da mesma forma que as pessoas desprovidas do transtorno. Para ele, aquela é a verdade tal qual para os saudáveis a
verdade é uma outra.

De forma parecida com a depressão, não encontramos alterações de exames complementares que comprovem a doença esquizofrenia. Diante disso, é esperado que surjam perguntas como: se essas doenças não aparecem em exames complementares, elas realmente existem ou seriam apenas “uma questão espiritual?” Uma outra possível visão seria a de que “as doenças psiquiátricas são condições da mente e a mente não é mensurável com exames complementares; não há um órgão, fisicamente palpável, para dizer onde está a mente”. Nenhuma dessas visões é a explicação que a ciência e, como consequência, os profissionais que tratam a saúde mental, utiliza.

Na verdade, a mente e o nosso cérebro são a mesma coisa. Superando a visão cartesiana da dualidade mente-corpo (mente-cérebro), esta é a visão mais atual da neurociência e que cada vez mais surgem evidências mais e mais robustas: não é simplesmente que a mente seja um produto do nosso cérebro; a mente é o nosso cérebro. E é claro que seria minimamente plausível que um indivíduo deprimido ou
delirante tenha alguma alteração no funcionamento desse cérebro. Sim, caro leitor, é claro que tais alterações existem!

Por exemplo, é possível que uma pessoa tenha um tumor cerebral, em uma região específica do cérebro, e que, como consequência, venha a desenvolver depressão, esquizofrenia ou outra condição psiquiátrica (eu dei o exemplo do tumor, mas outras doenças diferentes do câncer poderiam ter essa consequência – lúpus é um outro exemplo). Nesse caso, a doença (o tumor) vai ser comprovado através de uma ressonância magnética do cérebro. A alteração morfológica e macroscópica será detectável por um exame de imagem. Mas, nesse caso, a condição psiquiátrica (depressão, esquizofrenia) é uma condição consequente ao tumor. No fundo, tudo começou com o tumor. Costumamos dizer que, nesse caso, a condição psiquiátrica é secundária (a expressão “secundária” não está querendo dizer que é de “importância menor”; ela está querendo dizer que é consequente a uma outra condição (no caso, o
tumor)) e não primária.

Quando um indivíduo tem depressão (ou esquizofrenia, por exemplo) e fazemos exames e não encontramos “nada”, aí sim dizemos que a condição psiquiátrica é primária. Em outras palavras, não há uma causa não-psiquiátrica para o que o indivíduo está apresentando. Porém, nesses casos também, há alterações no funcionamento desse cérebro.

O que ocorre é que os exames que temos para detectar esse tipo de alterações ainda são exames de alto custo e de dificílimo acesso. São exames que, até os dias de hoje, são usados apenas em protocolos de pesquisa e não na prática clínica.

Então, na prática clínica, o psiquiatra, ao menos por enquanto, não disporá de recursos tecnológicos para comprovar nenhuma condição psiquiátrica primária. Em contrapartida, ele disporá de algo que nenhuma máquina (que a inteligência artificial não nos ouça…) é capaz de dar: a sensibilidade humana. Ao conversarmos com nossos pacientes, estamos usando mão de um tipo de exame, exclusivo da inteligência e sensibilidade humanas: o exame clínico. Esse é o exame que vai detectar, diagnosticar, os transtornos psiquiátricos primários. É a empatia do profissional por seu paciente que irá tentar perceber principalmente duas coisas: sofrimento e quebra da funcionalidade.

Se uma condição está sendo suficiente para gerar sofrimento significativo em um indivíduo e se, em função daquela condição, está havendo também um prejuízo no seu funcionamento (seja no seu autocuidado, seja na sua capacidade laboral, acadêmica, social), dizemos que há ali um transtorno. Aliás, esta é uma das máximas da psiquiatria: “para haver um transtorno (um diagnóstico), tem que ser um transtorno (gerar sofrimento significativo e gerar prejuízo na funcionalidade). É claro que a percepção disso tudo, por parte do profissional que atende, avalia o indivíduo, deve sempre pressupor muita sensibilidade e subjetividade do mesmo. É a sensibilidade do humano, que olha para um outro humano e que, ao usar a “régua” da empatia, identifica ali um problema a ser resolvido e move ações – que não se restringem a remédios – para resolvê-lo.

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