Livro editado pela Editora da UFRN levou o 1º em ilustração no Prêmio Jabuti 2023. Foto: Reprodução
Livro editado pela Editora da UFRN levou o 1º em ilustração no Prêmio Jabuti 2023. Foto: Reprodução

O livro ‘A notável história do homem-listrado”, da gravadora, pintora, desenhista, ilustradora, ceramista, escritora, teórica da arte e professora Fayga Ostrower, da editora da UFRN, foi o vencedor do Prêmio Jabuti 2023 na categoria “Ilustração”.

Fayga Ostrower nasceu na Polônia e chegou ao Brasil com 13 anos de idade, em 1933, na condição de imigrante. Laureada com importantes premiações como o Prêmio Nacional de Gravura na 4ª Bienal de São Paulo e Prêmio de Gravura da Bienal de Veneza, realizou uma brilhante trajetória artística.

O livro da editora da UFRN premiado no Prêmio Jabuti 2023 foi organizado por sua sobrinha-neta, Ana Caldas Lewinsohn, também professora do Departamento de Artes da UFRN. “A notável história do homem-listrado” foi escrito e ilustrado em 1947, por Fayga Ostrower, para seu sobrinho Peter, a primeira criança nascida no Brasil após a imigração de sua família, fugida do nazismo, em 1933.

A família de Peter Lewinsohn guardou o único exemplar original esse livro por anos. Ana Lewinsohn, sobrinha de Peter, viu o livro pela primeira vez em 2018 e, impactada com os desenhos, as cores e a história, decidiu publicá-lo.

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Durante a epidemia de Covid 19, Ana Lewinsohn, professora da UFRN, intermediou a edição do livro com a editora da universidade (EDUFRN). Seu pai, Thomas Lewinsohn traduziu o texto do alemão para o português, e Rafael Campos, da EDUFRN, criou o design editorial. Foram acrescentados pequenos textos adicionais, fotografias e agradecimentos.

Em 2023, mais de 70 anos após sua concepção, o livro “A notável história do Homem-Listrado”, de Fayga Ostrower, foi lançado junto com a abertura da exposição “Fayga Ostrower: Artista Educadora”, em março de 2023, no NAC/UFRN.

Na entrevista abaixo, concedida a Marize Castro e publicada no portal da UFRN, Ana Caldas Lewinsohn fala sobre o processo de organização e edição do livro da editora da UFRN premiado no Prêmio Jabuti 2023.

Marize Castro – Ana, conte-nos o processo de organização deste livro deixado por Fayga Ostrower, que estava inédito até ser editado pela EDUFRN. As ilustrações e as fontes tipográficas são escolhas de Fayga ou da equipe da produção editorial? Onde se encontravam os originais? Quem teve a ideia de publicar? A intenção de Fayga ao escrevê-lo era de edição para o grande público, ou apenas um “mimo” para o sobrinho?

Ana Caldas Lewinsohn – Existe apenas um original, que está aos cuidados de minhas primas Ilana, Ludmilla e Tatiana Lewinsohn, filhas de Peter Lewinsohn, para quem o livro foi feito. Este livro original estará na exposição “Fayga Ostrower: Artista-Educadora”, no NAC, com o lançamento do livro. O original foi mantido guardado por muitos anos e eu não tinha conhecimento dele. Tive o primeiro contato com o original em 2018, quando minha prima Milla levou aos meus pais e conheci a obra. Fiquei encantada! A história e as ilustrações, feitas para o nascimento de um sobrinho, por Fayga, me chamaram a atenção por tamanha beleza das cores, imagens, traços, composição e narrativa tão singela e, ao mesmo tempo, reflexiva. A intenção de Fayga foi apenas um presente para o sobrinho, tanto é que nunca foi encaminhado para a publicação. Mas como é algo inédito, tanto a obra como essa faceta de Fayga, ou seja, o universo da infância, pensei que seria um projeto importante publicá-lo para ser apreciado pelo grande público. Assim, tive a ideia e meu pai, Thomas Lewinsohn, que também é fotógrafo profissional, fotografou cada página e traduziu o livro para o português (o original é em alemão, já que tinham o hábito de falar alemão em casa com as crianças). Com esse arquivo “debaixo do braço”, fiquei procurando e aguardando uma oportunidade de publicação, fato que se consumou lindamente com a doação de um acervo de 77 obras de Fayga pelo Instituto Fayga Ostrower para o NAC da UFRN, em comemoração ao centenário de nascimento de Fayga, em 2020. Foi então que começamos o projeto de publicação, abraçado pela EDUFRN e NAC com grande empenho, através de Teodora Alves e Helton Rubiano. As ilustrações são originais de Fayga e as fontes tipográficas são a sua letra pintada à mão. Na produção do livro, Rafael Campos, designer gráfico da EDUFRN, teve um papel fundamental na composição das páginas onde há a tradução para o português, onde ele e sua equipe utilizaram a letra de Fayga para os escritos e as imagens do original reconfiguradas na composição de cores complementares à ilustração da artista. Foi um trabalho de muita sensibilidade e grande talento. Ao final da história, resolvemos colocar um pequeno texto e fotos que contam a história de Fayga, encaminhados pelo Instituto Fayga Ostrower, através de Noni, filha de Fayga e presidente do Instituto. É interessante observar também que um dos primeiros trabalhos profissionais de Fayga enquanto artista, foi a ilustração de livros, entre eles “O Cortiço”, de Aluízio Azevedo e “Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima.

MC – Penso que é muito significativo o adjetivo “listrado”, que é o fio condutor da história, pois sabemos que Fayga chegou ao Brasil com a sua família sob a condição de emigrantes judeus. Sabemos também que na época da Segunda Guerra Mundial os judeus usavam uniformes listrados para diferenciá-los do resto da população e, também, ou principalmente para marcá-los. Terá sido uma escolha consciente esse adjetivo? O que você pensa sobre a escolha desse adjetivo?

ACL – Esse fato também me chamou a atenção, quando vi o livro pela primeira vez, a coincidência entre as listras da roupa da família e o uniforme de judeus na época da guerra. Ao pensar que o livro foi escrito logo após o fim da guerra, em 1947, em comemoração ao primeiro nascimento na família de uma criança no Brasil, vejo a obra com algumas camadas de sentido e esse pode ser um deles, uma alusão ao povo judeu e um manifesto à liberdade. No entanto, as listras, na história, são referência a uma identidade e um pertencimento, algo que orgulha a família e que a faz deixar de comer, quando vê o pai sem as listras, porém cheio de comida na sacola. E todos ficam felizes quando as listras são devolvidas, mostrando a importância da preservação da identidade de um povo, mesmo tendo sido ele dizimado em grande parte e emigrado para todos os cantos do mundo. Me parece ser um elemento, portanto, dialético, que faz referência, mas não de maneira ligada diretamente à dor, sendo uma metáfora que subverte um símbolo originalmente depreciativo em algo transformador. De qualquer forma, difícil saber qual era o intuito de Fayga nessa escolha, certamente não foi uma escolha inconsciente, mesmo ela tendo defendido a ideia de que a criação vem em grande parte do inconsciente. O interessante disso tudo é ver o desdobramento da História e o caminho natural da vida. Hoje leio o livro para a minha filha Luiza, de cinco anos, e ela acha muito engraçado o homem-listrado, que tem um lado diferente do outro e isso chama a atenção. Ela se diverte e se encanta com a história, mostrando que parece ser um livro de grande alcance, para além da época em que foi escrito.

Penso que a fome, a perda e a reafirmação da própria identidade são temas que permeiam essa história, supostamente, infantil. A família de Fayga chegou ao Brasil em uma situação de penúria. Ela mesma teve que trabalhar ainda criança. Essa condição pode, a seu ver, ter inspirado a artista a elaborar essa obra de uma forma lúdica, mas profundamente consciente de sua origem e de suas dores?

Certamente. Fayga defendia a ideia de que toda a criação artística vinha do inconsciente e da própria vida, que era a real matéria de onde surgiria qualquer composição. Assim, a experiência de vida de cada pessoa irá afetar e colaborar de forma extremamente contundente nas suas obras de arte. Fayga via a arte como um caminho de autoconhecimento, com uma visão profundamente humanista, que irá afetar seu modo de lecionar aulas enquanto educadora. A intensidade, a beleza, os contrastes, as linhas de força, além da presença complementar entre aquarelas e gravuras, enfim, sua trajetória nas artes plásticas reflete a sua trajetória de vida. Não há como separá-las. Temas que são trazidos no livro, como a fome, a identidade, a união da família e a superação, são reflexos de uma trajetória familiar de grandes e diversas superações, desde a mais básica e fundamental que é a sobrevivência. Fayga e seus irmãos, quando muito pequenos, fugiram por uma floresta entre a Alemanha e a Bélgica, pela madrugada, para depois conseguirem vir ao Brasil. Todo esse imaginário permeia a criação e atuação de Fayga na arte e no mundo. O livro A Notável História do Homem-Listrado, foi escrito num momento de grande felicidade para o mundo (o fim da guerra) e para a família (primeiro nascimento no Brasil), dessa forma, creio que é um símbolo de resistência, sobrevivência, transformação, renascimento e celebração, de um modo poético e singelo. Por ser um livro infantil feito por uma artista como Fayga, penso que a obra tem o potencial de agradar não só as crianças, como também adultos.

Fayga Ostrower em seu atelier. Foto: Reprodução/Senado Federal
Fayga Ostrower em seu atelier. Foto: Reprodução/Senado Federal

MC – Fayga era, além de uma artista extraordinária, uma arte-educadora que se tornou referência na arte-educação brasileira, ministrava cursos tanto para artistas, estudantes de arte como para operários, pois acreditava que todo interlocutor era potencialmente capaz de vislumbrar valores estéticos, sociais ou emotivos na forma artística. Você, além de sobrinha-neta de Fayga Ostrower, é professora do Departamento de Artes da UFRN, qual a medida da influência dela no seu ofício?

ACL – Meu campo de atuação é dentro das Artes Cênicas, sou professora do curso de Teatro do Departamento de Artes da UFRN. Mesmo não sendo professora das artes visuais, os livros de Fayga influenciam o meu trabalho enquanto professora e artista, pois as questões que ela discute em suas obras vão muito além de conhecimentos específicos de linguagem, já que tratam da criatividade e de processos de criação, além de história da arte. A maneira como Fayga nos apresenta discussões sobre o fazer artístico, a sua postura enquanto cidadã no diálogo da produção artística com a sociedade, a sua defesa da arte enquanto um caminho de autoconhecimento e de valorização do humano, a luta por uma arte democrática, todos esses princípios me ensinam e me influenciam enquanto educadora e artista. Em vídeos de aulas e palestras podemos verificar alguns outros princípios que permeiam o seu fazer e constroem valores de grande importância para serem debatidos em sala de aula, como o envolvimento integral do ser com o seu fazer, a paixão pela arte, o estudo constante e suas amplas referências (no campo da arte, da ciência, da literatura, da filosofia), que influenciam o seu pensamento e sua obra, o reconhecimento do resultado de uma obra de arte enquanto fruto de um trabalho persistente e de profundo rigor, além de uma educação da percepção e da sensibilidade. Todos esses aspectos norteiam o meu trilhar no campo das artes, tanto em meu processo de criação como em minha atuação enquanto educadora.

MC – Fayga era uma humanista, ela compreendia a arte como um caminho de crescimento espiritual. Em um dos seus livros, ela afirmou que “ninguém ensina a ninguém como criar”; enfatizou que cada artista terá que descobrir o mistério da criação e aprendê-lo consigo mesmo. Ela afirma que criar “é um caminho de vida”. Você como professora de arte, concorda que “o artista dispõe de uma bússola interior que o guiará: a própria intuição”, como afirmou Fayga? Ou esse tempo de desconcentração e falta de foco afeta e reinventa a criação artística?

ACL – Boa pergunta. O tempo em que vivemos, de dificuldade de concentração, falta de foco e informações em demasia gera algumas dificuldades para todo campo de estudo e também influencia a criação artística. A arte sempre está em diálogo profundo com o seu tempo, sendo às vezes chamada de precursora de tempos que virão. Dessa forma, inevitavelmente, nosso mundo atual de grandes excessos, por um lado, e grandes faltas, por outro, constrói os artistas e aprendizes da arte de hoje, com toda a problemática envolvida nesse pêndulo. A intuição, a meu ver, sempre será a luz que guiará a criação artística, já que a demanda da arte não é exata e, portanto, não necessita resolver uma equação, por isso os caminhos e metodologias são diversos e, muitas vezes, intransferíveis. No entanto, um princípio importante a guiar a criação, para Fayga, parte do rigor, ou seja, de uma relação de compromisso muito sério com o próprio fazer, que vai ser responsável, inclusive, por encontrar, segundo ela, a forma “justa” na obra, onde nada falta e onde qualquer coisa a mais pode ser excedente. A construção desse olhar apurado vem de uma relação muito verdadeira e dedicada ao seu ofício, além de ser fruto de um tempo onde a concentração não era tão perturbada como nos tempos atuais. Sendo assim, vejo, trabalhando com jovens, o desafio da persistência, no caso do teatro, por exemplo, quando afirmo a necessidade de ensaios prolongados e repetidos de uma mesma cena, até que ela fique “justa”, pronta. A necessidade, de certa forma ansiosa, de novidade constante, atrapalha alguns tempos que são próprios da criação: tempos de escuta, de espera, de pausa, de crise, para enfim encontrar insights ou intuições. Então, a pressa, premissa dos tempos atuais, além da impaciência que rege a escuta de áudios 1,5x ou 2x mais rápidos do que os originais, acabam prejudicando o campo da criação artística, ou da experimentação. Enquanto educadora ou diretora teatral, vejo que um de nossos papéis é o de proporcionar outros tempos, janelas ou portais que possam produzir atmosferas que inspirem corpos a entrarem em contato consigo mesmos e suas intuições, valorizando, como Fayga mencionava, a potencialidade de cada um. Alguns recursos que utilizo com processos criativos e formativos, como a meditação e a yoga, têm me auxiliado muito nessa procura. Por outro lado, a vivência desse mundo hiperconectado produz uma forma de arte com interlocuções muitas vezes novas e diversas, de grande potência, algo que, décadas atrás, havia maior dificuldade em função das distâncias temporais e espaciais às referências. O grande desafio, portanto, é encontrar um certo equilíbrio no paradoxo entre identificar nossa bússola interna, para ter as rédeas de nosso caminhar, diante de um tempo com tantas atrações e distrações e, ao mesmo tempo, nos permitir ficar à deriva.

MC – Finalizando, qual o lugar, a seu ver, de Fayga Ostrower no cenário artístico brasileiro e no cenário artístico mundial?

ACL – Creio que o lugar de Fayga no cenário artístico brasileiro e mundial está posto, ou seja, a sua grandeza enquanto artista e pensadora da arte é incontestável. Mesmo assim, me chama a atenção a atemporalidade de suas reflexões nas questões mais profundas da criação artística, sendo referência constante para todas as pessoas que desejam estudar ou conhecer sobre esse assunto. Da mesma maneira, as suas obras, expostas nos mais diversos museus e galerias do Brasil e do mundo, apresentam uma expressão atemporal. Talvez, por serem fruto de um processo muito vertical e intenso, dialogam e comunicam aos mais diversos povos, idades e tempos. Mesmo assim, existe ainda um imenso campo aberto para que pessoas que não circulam no meio artístico tomem conhecimento de sua obra e possam se beneficiar também de seus ensinamentos e provocações como arte-educadora. É por isso que ações como essa de doação das obras da Fayga pelo Brasil, no intuito de difundi-las e democratizar a arte, devem ser cada vez mais incentivadas, para que a formação de público e o trabalho com a sensibilidade e expressão possam ser valorizados e compreendidos como valores humanos na sociedade e na cultura. A publicação desse livro infantil e a primeira de uma série de exposições que serão realizadas no NAC, com ações formativas, vão ao encontro a esse propósito. Nesse sentido, Fayga também tem um potencial ainda a ser mais aproveitado, dentro de escolas e ensino não formal, além de atividades para o público em geral. Viva Fayga!

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