Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.
Se a pessoa não compreender o que estamos querendo explicar, ela não é a culpada. Nós é que devemos utilizar uma linguagem mais acessível, sermos mais didáticos para que a compreensão aconteça
Publicado 15 de dezembro de 2025 às 17:15
Nunca me esqueci de um ocorrido quando ainda estava nos primeiros dias de atividade como médico. Estou sentado na sala de atendimento e chamo a próxima paciente: “pode entrar, Dona Maria (nome fictício). Pois não, dona Maria, como a senhora está se sentindo hoje”. Então ela começa a me contar a sua rotina diária, seus achaques reumatológicos e o uso diário de um medicamento chamado clonazepam. “Ah, doutor, queria parar de tomar esse remédio um dia; mas eu vou conseguir, se Deus quiser. Venho diminuindo a quantidade. No momento, estou tomando apenas meia banda dele”. Eu não sabia que, neste momento, estava prestes a iniciar uma profunda discussão com Dona Maria sobre as frações…
“Ah, Dona Maria, que bom que a senhora está tentando tirar esse medicamento”. O clonazepam é um medicamento útil, com seus problemas e benefícios. De uma forma geral, o maior problema (não o único, registre-se) em relação a este medicamento em específico é o seu uso por longos períodos. É claro que existem medicamentos (psiquiátricos e não-psiquiátricos) que devem ser tomados por toda a vida, mas existem outros fármacos (psiquiátricos e não-psiquiátricos) que devem ser tomados apenas por um período circunscrito.
Pensando que uma “banda” de um comprimido referir-se-ia à metade de um comprimido (meio comprimido), concluí: “então quer dizer que a senhora está tomando apenas um quarto do comprimido”, pois meia banda – no meu raciocínio – seria a metade de uma banda; em outras palavras, seria a metade da metade de um comprimido inteiro. Nesse momento, ela fez uma expressão facial de dúvida.
“Não, doutor, é meia banda”, disse ela. Muito interessado em entender e em me fazer entender, apressei-me a pegar um papel e uma caneta para desenhar. Desenhei um comprimido qualquer, arredondado e disse: “veja isso aqui, Dona Maria, imagine que isso é o comprimido”, apontado para o desenho circular. “Agora, vamos parti-lo no meio; quando fazemos isso, temos duas bandas do comprimido”; disse isso e, ao mesmo tempo, estava fazendo outro desenho em baixo, com duas meias-luas.
“Agora, ao partirmos cada uma dessas bandinhas, temos a meia banda que a senhora toma, né isso?” De forma inesperada, aquela minha atitude, em vez de trazer esclarecimento para a situação, na verdade, deixou a minha paciente mais confusa. Porém, solícita, tentou fazer-se entender. Ficou ela em dúvida sobre o que, na prática, estava fazendo com o comprimido lá na sua rotina diária de uso de medicamentos e, no final das contas, aproveitou o meu desenho e apontou para uma das meias-luas que eu já fizera e disse: “veja, doutor, eu tomo isso aqui, meia banda”, confirmou e eu entendi que o que ela estava chamando de meia banda era, na verdade, a metade de um comprimido. A origem da confusão é que, no meu entendimento, um comprimido é um comprimido. Quando dividido na metade, ele se transforma em duas bandas. Porém, no entendimento dessa paciente, quando um comprimido é dividido na metade, ele se transforma em duas meias bandas…
Percebi que essa forma diferente de nomear as frações se repete na mentalidade de muitos outros pacientes e, em cada atendimento, já trago na minha memória os acontecidos daquele primeiro episódio. Claro que sempre faço um desenho para confirmar se o que o paciente está chamando de meia banda é mesmo o que eu chamo de uma banda…
Mas eu costumo dizer que a gente, enquanto psiquiatra, sempre está pensando em tirar o clonazepam da lista de medicamentos de um paciente. Também costumo dizer que precisamos aproveitar as oportunidades para fazer essa retirada; não é possível retirar esse medicamento em qualquer momento, de qualquer jeito. E digo ainda que tal retirada deve ser feita na forma de “desmame”, isto é, diminuindo-se progressivamente a dose.
Alguns pacientes, motivados em querer retirar o medicamento citado, fazem investidas sem a nossa orientação e, na maioria das vezes, evoluem para um insucesso e acabam ficando presos ao medicamento. Exemplos de tais investidas: suspendem o medicamento bruscamente; passam a tomar o medicamento dia sim, dia não; fazem uma redução intensa na dose. Como eu disse, ao fazer uma dessas investidas equívocas, acabam se sentindo mal e tendem a retornar a usar o medicamento de forma regular e na dose original. O desfecho é não conseguirem “sair do medicamento”.
A melhor estratégia de desmame é a redução lenta da dose; claro que essa redução precisa ser progressiva para que, em um determinado momento, se chegue à “dose zero”. Diminuição lenta, gradual da dose e uso diário do medicamento em contraposição ao uso dia sim, dia não.
O clonazepam existe na forma de comprimidos e na forma de solução oral (em gotas). Uma boa estratégia de desmame é fazer o cálculo de equivalência entre a apresentação em formato de comprimidos e a apresentação em formato líquido. Se o paciente está fazendo uso do clonazepam em comprimido – feito esse cálculo de equivalência – fazemos o paciente migrar para o formato em gotas porque tal formato é o ideal para obtermos o sucesso do desmame: a redução gota a gota permite que a redução não seja brusca. Uma gota a menos favorece o paciente a “não sentir falta” daquela dose que foi retirada.
Pois bem, estava eu atendendo uma outra dona Maria (mais uma vez, nome fictício) e nos voltamos para elaborar estratégias para a retirada do famoso clonazepam. Acontece que dona Maria tomava 2 miligramas (mg) por dia de clonazepam. Comecei a falar da estratégia de converter esses 2 mg para gotas porque assim ficaria mais fácil o desmame. Logo percebi a expressão facial de recusa: “não, doutor, já tomei isso em gotas; o gosto é horrível; eu não vou conseguir; dê um outro jeito”.
Percebi que dona Maria estava genuinamente querendo tirar o clonazepam, mas também percebi que era genuína a sua ojeriza pelo sabor do medicamento em gotas.
Ocorre que o clonazepam em comprimido existe no formato de 2 mg e também existe no formato de 0,5 mg (ainda existe o clonazepam no formato de 0,25 mg; porém, esse clonazepam é a formulação sublingual; esta tem outros objetivos; coloquei essa informação apenas para ficar mais completo o texto, mas essa apresentação não vai entrar nessa história). Quando ela me falou de sua experiência desagradável com o sabor das gotas de clonazepam, já comecei a pensar em pedir ajuda do clonazepam de 0,5 mg.
Veja: se eu simplesmente orientasse que ela passasse a tomar meio comprimido de 2 mg, eu iria estar orientando uma redução na dose de 2 mg para 1 mg; uma redução de 50%; essa redução não é uma redução suave, isso não iria dar certo para aquela paciente. Se ela aceitasse a ideia das gotas, eu conseguiria reduzir de 2 mg para 1,9 mg. Seria o ideal! Dificilmente essa estratégia daria errado (é claro que reduzir de 2 para 1,9 seria apenas o primeiro passo nesse desmame; outras reduções viriam…). Porém, trabalhando como o que temos, verifiquei que eu conseguiria reduzir a dose de 2 mg para 1,75 mg. Tal redução, de 12,5%, é bem mais suave do que fazer uma redução de 50%, pensei. Coloquei-me a explicar a dona Maria.
“Tudo bem, dona Maria, não vamos passar o clonazepam em gotas para a senhora. Vamos fazer assim: a senhora sabe que existe o clonazepam de 0,5 mg, não é?” Ela balançou com a cabeça que sim. Eu continuei: “pois bem, vamos prescrever para a senhora o clonazepam de 0,5 mg e a senhora vai tomar 3 comprimidos e meio”. Veja: 3 comprimidos de 0,5 mg dá uma dose de 1,5 mg; meio comprimido de 0,5 mg dá uma dose de 0,25 mg; somando tudo, temos 1,75 mg. Dona Maria disse com uma expressão facial de estranheza: “doutor, a gente não ia diminuir esse clonazepam? Eu tomava um comprimidinho de 2, agora o senhor vai passar o de 5 e ainda quer que eu tome 3!”
A confusão estava armada. Mais uma vez, o problema das frações (que é uma outra forma de expressar números decimais). Dona Maria não compreendia que 0,5 é uma quantidade inferior a 2, inferior a 1. E também não compreendia que uma quantidade maior de comprimidos pode significar uma dose menor do medicamento.
Sua filha, que estava ao lado, parecia não compreender também, mas me pareceu estar disposta a entender. Peguei papel, desenhei, tentei elaborar estratégias didáticas para que elas entendessem que 4 comprimidos de 0,5 mg seriam o equivalente a 1 comprimido de 2 mg. Usei expressões do tipo “comprimidos fraco” para me referir ao de 0,5 mg em comparação a “comprimido forte” para me referir ao de 2 mg. Frisei que o comprimido não era de 5, mas de 0,5.
Não foi fácil, mas concluí aquela consulta acreditando que a filha dela entendeu que ali estava realmente havendo uma redução na dose do medicamento. Conto essas histórias não para ridicularizar os pacientes. Claro que não! Nenhum paciente tem a obrigação de entender as logísticas por trás das práticas da medicina e também não tem a obrigação de terem recebido uma alfabetização desta linguagem chamada matemática. Nós, profissionais, é que temos a obrigação de utilizarmos uma linguagem que esteja ao alcance daquela pessoa que está na nossa frente.
Se a pessoa não compreender o que estamos querendo explicar, ela não é a culpada. Nós é que devemos utilizar uma linguagem mais acessível, sermos mais didáticos para que a compreensão aconteça. Mas é claro que, quando esse tipo de coisa acontece – como os exemplos dados aqui nesse texto – fica clarividente a importância da educação, incluindo a compreensão da matemática, na vida de uma pessoa.
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