O nosso cérebro tem formas próprias de funcionar para exercer as mais diferentes funções. Por exemplo, a memória, uma das mais importantes funções cognitivas, tem características bastante peculiares e que nos surpreendem em algumas circunstâncias.
Uma das formas de nos surpreendermos com a nossa memória é que – bem sabido de todos – há coisas que acontecem conosco hoje e que já não nos lembramos mais daqui a pouco tempo. Por outro lado, existem outros fatos que aconteceram décadas atrás e que somos capazes de nos lembrar como se fossem hoje, em riqueza de detalhes. Paradoxal? Talvez. Mas por que é assim?
Para ilustrar algo sobre a memória, trago aqui um trecho do fabuloso livro “Os Irmãos Karamázov”, de Fiódor Dostoiévski. É claro que o texto descreve uma cena de uma história inventada pelo autor. Porém, como já foi dito pela filosofia e como é bem sabido no universo Dostoievskiano, tal cena poderia (poderá e pode) ocorrer plenamente na vida real; aliás, eu diria, Dostoiévski fala da vida real. Ei-lo (o trecho se refere à edição traduzida por Paulo Bezerra, livro I, capítulo IV: o terceiro filho, Aliócha): “Aliás, já mencionei que ele [Aliócha], tendo perdido a mãe mal completara três anos, guardou-a na memória pelo resto da vida, seu rosto, seus carinhos, ‘como se ela estivesse viva à minha frente’. Lembranças como essas podem ser conservadas (e todo mundo sabe disso) desde a mais tenra idade, até desde os dois anos, mas durante toda a vida só se manifestam como uma espécie de pontos de luz saídos das trevas, de um cantinho de um imenso quadro que se apagou e desapareceu por inteiro, excetuando-se apenas esse cantinho. Era exatamente o que lhe acontecia: ele se lembrava de uma tarde de verão, tranquila, uma janela aberta, raios oblíquos do sol poente (era desses raios oblíquos que mais se lembrava), um ícone num canto do quarto, diante deste uma lamparina acesa, e diante da imagem sua mãe ajoelhada, aos prantos como em crise de histeria, entre gritos e ganidos, agarrando-o com ambos os braços, abraçando-o com força a ponto de lhe causar dor e orando por ele a Nossa Senhora, estendendo-o dos seus abraços para o ícone com ambas as mãos como se o colocasse sob a proteção da Virgem… e de repente a ama entra correndo e o arranca dos braços da mãe assustada. Que quadro! Aliócha guardou na memória desse instante também o rosto da mãe: dizia que era um rosto alucinado, porém belo, até onde a lembrança lhe permitia julgar”.
Contemple uma xilogravura, presente em uma outra tradução desta obra (tradução esta, de Rachel de Queiroz), ilustrando a cena acima:

Por minha vez, tenho minhas lembranças tão antigas como as de Aliócha. Certa feita, quando eu tinha cerca de 3 anos, estava a me preparar para tirar a famosa foto à frente da bandeira do Brasil no jardim de infância. Estudei até o segundo ano do ensino fundamental (advirto, porém que, naquela época, em 1985, a contagem dos anos escolares era diferente: seria, naquela época, o primeiro ano do ensino fundamental) no Jardim Escola Primavera. Escola de bairro, situada à época no Conjunto Mirassol, local onde eu residia. A professora (ou tia) me posicionou para me sentar à cadeira, com uma enorme (para mim, era enorme) bandeira do Brasil, situada às minhas costas. Deu, na minha mão direita, uma caneta para que eu a segurasse, como se estivesse escrevendo algo – essa era a pose. Ela seria a fotógrafa.
Porém, antes que ela chegasse à posição adequada para fazer a fotografia, eu já havia trocado de mão e segurei a caneta com a mão esquerda. Claro que aquilo não foi calculado. Com certeza, ainda estava nas minhas primeiras empunhadas de caneta e, a rigor, não sabia bem o que estava fazendo. Acontece que a professora percebeu a troca de mãos e correu para me “corrigir”. Tentei segurar aquela caneta com a mão direita, mas a caneta caiu sobre a mesa. De forma automática, peguei-a com a minha mão esquerda. A coitada da professora, quando pensou que tudo estaria em ordem e, já com a máquina pronta, percebeu a repetição do meu comportamento. Um pouco contrariada veio ao meu encontro e tentou, mais uma vez, modificar a cena e, mais uma vez, tudo se repetiu: a caneta caiu e eu a tomei com a minha mão esquerda! Felizmente a professora desistiu de mudar de mão. Eis o resultado:

A memória tem uma forte relação com as emoções. Tanto o evento de Aliócha como o meu com a professora, marcaram as nossas memórias porque, cada um a seu modo, nos emocionou. As estruturas cerebrais envolvidas com a nossa memória estabelecem conexões com aquelas envolvidas com as emoções e os eventos que mais nos emocionam são os que mais nos lembramos.
Por outro lado, as informações veiculadas pelo nosso olftato também guardam vínculo com a memória e aqui, de forma curiosa, o caminho neural é inclusive um pouco mais direto do que o trajeto de informações que vão a partir do sentido da visão e da audição.
Tanto é que eu quero contar aqui uma outra memória que também me emociona: o cheiro do gelo.
No final da década de 70, um tio querido, Claúdio, irmão da minha mãe, teve a feliz ideia de comprar um terreno na Praia de Cotovelo, na cidade de Parnamirim. Construiu uma casa, ocupando apenas a metade deste terreno. O meu pai, acompanhando esta ideia, comprou a metade do terreno que sobrou e construiu uma outra casa, vizinha à do meu tio e ali, naquelas duas casas, cercadas por um mesmo muro e sem divisão entre elas, eu e os meus primos – filhos de Tio Cláudio – vivemos muitos momentos de intensa alegria e muito afeto. Esses primos, 7 ao todo, são os meus irmãos que eu não tive, pois sou filho único.
Acontece que as condições financeiras dos meu pais não eram de opulência e a mobília da casa de Cotovelo era escolhida com as sobras da casa de Mirassol. À medida que os móveis da casa de Mirassol iam ficando mais velhos e os meus pais julgavam que estava na hora de trocá-los, havia um aproveitamento e tais móveis – já um tanto quanto surrados – iam povoar a casa de Cotovelo. Por exemplo, a geladeira da casa de Cotovelo não gelava muita coisa. Com frequência, íamos para Cotovelo no domingo passar o dia lá, ou no sábado ou sexta, passar o fim de semana. Minha mãe levava água em garrafas para bebermos, pois, em boa parte da temporada em que frequentávamos aquela casa, não havia água encanada. Ocorre que, quando nos deslocávamos de Mirassol para Cotovelo (nessa época, dizíamos que era uma “viagem”; a Rota do Sol ainda não havia sido construída…) e lá chegávamos, a água já estava à temperatura ambiente, não estava mais gelada. Então, no meu afã de criança de beber água gelada, mal chegava em Cotovelo e já ia colocar a água no, não muito potente, congelador da geladeira. A duras penas, a água conseguia se solidificar e o gelo se fazia…
Como eu gostava daquilo. Ah, como era mágico ter água gelada para beber em Cotovelo. Tão incrível que eu, a despeito de alguém dizer que o gelo é inodoro, sentia o cheiro do gelo. E até hoje eu o sinto. E, sempre que o sinto, lembro-me de Cotovelo.
Sigo empunhando canetas e escrevendo as minhas palavras e frases com a mão esquerda. Ainda hoje, gosto de cheirar gelo para me lembrar de Cotovelo. E, assim as memórias são construídas, repletas de emoções, sejam agradáveis ou ruins, desde que intensas. Quais as emoções que estamos vivendo hoje e que ficarão eternizadas nas nossas memórias?
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