Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.
Vou lhes contar aqui uma história que é bastante ilustrativa para entender como funciona a ciência. Sabemos que o cérebro humano é constituído basicamente de dois tipos de células: os neurônios e as chamadas células da glia.
Esse conhecimento foi estabelecido há mais de um século quando estudiosos como Santiago Ramón y Cajal e Camillo Golgi se debruçaram sobre excertos do cérebro e o estudaram com o auxílio de microscópios e preparações apropriadas de coloração. Para alguns, ali estavam sendo dados os primeiros passos da neurociência.
Os neurônios são as células mais importantes a compor o nosso cérebro. Porém, principalmente nas últimas décadas, reconhece-se que as células da glia são mais importantes do que se imaginava. Nas primeiras observações, os estudiosos imaginaram que elas serviriam apenas para preencher espaços e dar sustentação aos neurônios, servindo como uma espécie de cola para melhor preencher os espaços.
Daí o nome que foi dado: em grego, “glia” quer dizer cola. Porém, nos tempos atuais, cada vez mais descobrem-se funções importantíssimas relacionadas a esse grupo de células.
Entretanto, é indubitável que os neurônios é que são as mais importantes células; são os neurônios que fazem a nossa mente ser o que é. Durante muito tempo, houve, no mundo da neurociência, uma espécie de dogma, que afirmava que o cérebro humano possuiria 100 bilhões de neurônios – um número extraordinário. Há inclusive um livro básico de neurociência chamado “cem bilhões de neurônios”, escrito pelo neurocientista brasileiro Roberto Lent. Este livro faz parte das primeiras leituras de qualquer estudante de medicina e de qualquer estudante de neurociências.
Acontece que uma outra neurocientista brasileira – Suzana Heculano-Houzel – questionou Roberto Lent sobre de onde ele tirara essa informação – de que o cérebro humano teria 100 bilhões de neurônios. Roberto Lent conta essa história na segunda edição do seu livro e a repete na terceira edição, publicada em 2022. Vale a pena lê-la: “Durante a elaboração da primeira edição deste livro, minha colega Suzana Herculano-Houzel questionou o título que eu havia pensado para o livro: “Cem Bilhões de Neurônios”. Quais as evidências para esse número? – perguntou. A pergunta instigante me pegou de jeito: embora todos os livros e artigos admitissem esse número, não conseguimos encontrar quem houvesse contado de fato o número absoluto de células existentes no sistema nervoso.”
A dificuldade inicial de contar quantos neurônios existem no nosso cérebro surge do padrão não homogêneo de distribuição desses neurônios no cérebro. As mais diversas regiões do cérebro têm densidades diferentes de neurônios. Se, pelo contrário, a densidade neuronal no cérebro fosse sempre a mesma para todas as regiões cerebrais, bastaria que soubéssemos a quantidade de neurônios em uma
pequena região para obtermos a quantidade total estabelecendo uma proporção simples. Porém, Suzana – a cientista questionadora! – inventou um método de contar neurônios! Na verdade, ela inventou um método para contar núcleos de neurônios.
Porém, como cada neurônio tem apenas um núcleo, se contarmos quantos núcleos de neurônios há em um cérebro, também estaremos contando quantos neurônios existem nesse cérebro. Dito em poucas palavras, a estratégia de Suzana foi a seguinte: tomar um cérebro e triturá-lo, transformando-o em uma “sopa” de núcleos. Naquela sopa, haverá núcleos de neurônios e também núcleo das células da glia. Entretanto, através de métodos químicos simples, há como distinguir – dentre aqueles núcleos – quais são os de neurônios e quais são os de células da glia.
Desta forma, em cada amostra desta “sopa” de núcleos, temos uma distribuição homogênea, isto é, temos a mesma quantidade de núcleos para o mesmo volume analisado. Então, se soubermos quantos núcleos há em um certo volume, através de uma proporção simples, saberemos quantos núcleos haverá no volume total.
A pesquisadora conseguiu, por esse método, não só contar quantos neurônios existem no cérebro humano, mas também contar quantas células da glia. Os cérebros estudados por ela eram de pessoas que tinham entre 50 e 70 anos e o resultado foi o seguinte: para essa faixa etária, o cérebro humano possui, em média, 85 bilhões de neurônios. Para sabermos o número de neurônios em outras faixas etárias, precisaríamos fazer o estudo para essas outras faixas etárias. Enquanto não o fizermos, não podemos afirmar nada a não ser elaborar suposições.
A pesquisa desta neurocientista brasileira é revolucionária! Na minha humilde opinião, ela merecia ganhar o Nobel de Medicina e Fisiologia. O que ela fez não foi só contar neurônios; esse foi apenas o primeiro passo. Ela também identificou a proporção entre neurônios e células da glia; observou a distribuição quantitativa dos neurônios nas diversas regiões cerebrais; e ela também pode estabelecer comparações entre as quantidades de neurônios entre os seres humanos e outros primatas. Isso possibilitou o surgimento de outros insights na compreensão da evolução humana, na compreensão de como esse ser humano está inserido dentre outros animais e na compreensão do que é o ser humano.
O que Suzana fez inicialmente foi apenas questionar; verificar se havia ou não evidências sobre aquela declaração. O verdadeiro cientista é sempre um questionador. Na Ciência, não pode haver dogmas. Tudo é questionável, investigável. O cientista, acima de tudo, é um sujeito humilde no sentido de perceber e entender que ele pode estar errado. O cientista deve sempre estar disposto a rever seus conceitos, propor novas pesquisas para verificar se as conclusões a que chegou estão corretas ou se há alguma chance de erro, engano. Na Ciência, não há argumento de autoridade. Mesmo o mais famoso e renomado cientista terá que demonstrar, através de estudos sérios e replicáveis, as suas afirmações. Se não o fizer, a sua “autoridade” de nada servirá nas creditações.
É claro que a descoberta de Suzana é espetacular. Mas é claro também que deixou o Roberto Lent pensativo quanto ao título da segunda edição de sua obra. Vejamos o que ele escreveu: “A descoberta colocou-me um dilema: devo ou não devo mudar o título do livro? Já estava decidido a mudar, quando lembrei de um perfeito álibi para manter esse título eufônico. A composição celular do cérebro de pessoas mais jovens talvez leve de volta a composição absoluta do sistema nervoso humano aos cem bilhões de neurônios… Será?”
O resultado das reflexões do Roberto Lent foi o seguinte: a segunda e a terceira edições do seu livro vieram com o seguinte título: cem bilhões de neurônios?
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