Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo Geraldo Pinheiro: do sobressalto ao diagnóstico (breve relato de caso)

Embora não haja uma garantia absoluta de que, uma vez sendo feito o diagnóstico correto, tudo vai dar certo, quando o diagnóstico é feito de forma precisa, as chances de o paciente evoluir de forma mais favorável são muito maiores

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 28 de setembro de 2025 às 13:52

O texto que se segue é um relato de caso, não no sentido técnico do termo. Escrevo sem tentar obedecer à rigidez e ao rigor que se espera de um documento científico. Além disso, é claro que, para preservar a identidade da pessoa, usarei um pseudônimo genérico – Maria da Silva – e também ocultarei o local em que o atendimento aconteceu e a época em que foi realizado. Ei-lo…

Saio da sala de atendimento e, chegando à sala de espera, chamo a próxima paciente num tom de voz audível a todos os circunstantes – que eram cerca de 10 pessoas – mas, com plena consciência, de que não foi num nível sonoro excessivamente alto: “Dona Maria da Silva!” A paciente se levanta e, já vindo na minha direção, disse: “Dr. Geraldo, tomei um susto quando o senhor me chamou! Meu peito palpitou, estou aqui com o coração acelerado!” Já era uma pecinha do quebra-cabeça chamado “diagnóstico” passando à minha frente; eu, porém, ainda não sabia…

Um dos primeiros aprendizados que temos na disciplina de Semiologia Médica – a arte e ciência de ouvir o paciente, de fazer as perguntas certeiras, de interpretar o relato dos sintomas e de encontrar, através do exame clínico, os sinais (e interpretá-los também) e, a partir da união desses elementos, formular as hipóteses diagnósticas –, dito pelos grandes mestres, é o seguinte: “ouça atentamente o seu paciente, porque ele vai lhe dizer o diagnóstico”.

Estamos agora na sala de atendimento e ela começou o seu relato: “doutor, esses remédios não estão fazendo efeito, não estão servindo de nada; eu não durmo…” Na ocasião, a paciente não tinha, na sua lista de medicamentos, nenhum fármaco dito ativador (que poderia gerar uma dificuldade para dormir), assim como, por outro lado, esperava-se que os medicamentos prescritos podiam provocar, como efeito colateral não raro para aqueles medicamentos, sonolência. Questiono-me: “será que ela não está tomando os medicamentos da forma que foi prescrita?”

Uma das características mais marcantes na relação médico-paciente é a seguinte: cerca de dois terços dos pacientes não seguem exatamente as orientações médicas. Alguns desses pacientes não fazem nada do que a gente orienta; outros tantos obedecem apenas parcialmente às nossas orientações. Os estudos mostram que cerca de um terço segue as orientações médicas à risca! Sabedor dessa evidência, sempre devemos levar essa possibilidade em consideração diante de um paciente que não esteja tendo os efeitos esperados do(s) medicamento(s) prescrito(s).

Fiz um breve questionamento à paciente sobre a possibilidade de a mesma esquecer de tomar os remédios um dia ou outro, mas ela negou. É claro que a negativa dela não quer dizer que, necessariamente, ela está naquele terço dos obedientes. Entretanto, alguma coisa no seu olhar, talvez na sua postura, jeito de falar… Na verdade, não consegui, até hoje, definir o que me motivou a enveredar a entrevista por um outro caminho. Talvez tenha sido simplesmente a curiosidade de médico que quer tentar desvendar o mistério que está ali, à sua frente.

Perguntei: “dona Maria, a senhora tem dificuldade para dormir, eu já entendi. Mas, quando a senhora, enfim, consegue dormir, tem muitos pesadelos?” Ela me respondeu: “como o senhor adivinhou? Praticamente todas as noites”. Em seguida, eu perguntei: “dizemos que os sonhos maus são pesadelos, é assim que se definem os pesadelos; são coisas ruins acontecendo; dona Maria, o conteúdo desses pesadelos guarda alguma semelhança com algo que já aconteceu na sua vida?” Neste momento, dona Maria desabou em um choro bem prolongado…

Caro leitor, a verdade é que dona Maria havia passado por experiências extremamente dolorosas. Todos nós podemos passar por experiências negativas. Porém, existe um grupo de eventos, que guardam algumas características, que nos fazem classificá-los como “eventos potencialmente traumáticos”. Na psiquiatria, tais eventos – os potencialmente traumáticos – possuem uma definição precisa e trazem à pessoa que são submetidas a eles uma possível grave consequência: a de evoluir para uma condição psiquiátrica denominada Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT).

A definição atual de evento potencialmente traumático vem da Associação Americana de Psiquiatria, através do seu principal documento, o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, na sua quinta edição revisada (DSM-5-TR).

Copiaremos textualmente a definição de evento traumático do DSM: “exposição a episódio concreto ou ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual em uma (ou mais) das seguintes formas: 1) vivenciar diretamente o evento traumático; 2) testemunhar pessoalmente o evento ocorrido a outras pessoas; 3) saber que o evento traumático ocorreu com familiar ou amigo próximo. Nos casos de episódio concreto ou ameaça de morte envolvendo um familiar ou amigo, é preciso que o evento tenha sido violento ou acidental; 4) ser exposto de forma repetida ou extrema a detalhes aversivos do evento traumático (por exemplo, socorristas que recolhem restos de corpos humanos; policiais repetidamente expostos a detalhes de abuso infantil). Este tópico quarto não se aplica à exposição por meio de mídia eletrônica, televisão, filmes ou fotográficas, a menos que tal exposição esteja relacionada ao trabalho.”

Ao ler o parágrafo acima, vemos que a definição de trauma – do ponto de vista do trauma originador do TEPT – não inclui, por exemplo, decepções amorosas ou nas relações de amizade, demissões de emprego, nem ruína financeira. É claro que não é verdade que estes exemplos citados (decepções amorosas, nas relações de amizade, etc) são insuficientes para gerar sofrimento. Podem e devem gerar, a depender da personalidade da pessoa e do contexto em que os fenômenos ocorrem, sofrimento em
maior ou em menor grau, mas sem configurar o que hoje chamamos de TEPT.

Para o TEPT surgir, é necessário que o indivíduo seja submetido a um tipo específico de trauma, como aqueles que foram citados dois parágrafos acima. E também é verdade que nem todo mundo que é submetido a um evento desse tipo evolui para TEPT.

Mas a verdade é que a minha paciente, Dona Maria da Silva, infelizmente, foi submetida a múltiplos eventos traumáticos: ainda na infância – quando há um risco maior de o sujeito evoluir para TEPT –, mas também na vida adulta. E ali, naquela sala de atendimento, eu tive a oportunidade de acolhê-la, reconhecer o seu sofrimento e compreender melhor o seu diagnóstico.

“Dona Maria, queria estar lá, na sua infância, para protegê-la e empurrar para bem longe aquele monstro que lhe agrediu”, falei, tentando ser o mais afável possível. E ela, já com uma idade próxima dos 40 anos, viu em mim, pela primeira vez em sua vida, alguém em quem ela podia confiar, podia contar tudo porque viu que eu estava disposto a entendê-la e acolhê-la. “Nunca, doutor, senti compreensão da parte de ninguém; as poucas pessoas para quem falei sempre disseram que é besteira. Pedia a Deus, antes de vir para o senhor, que ele lhe iluminasse o olhar sobre mim”. “Dona Maria, conte comigo. Hoje eu compreendi melhor a sua história. Vamos começar no dia de hoje uma nova jornada.”

A verdade é que, ao conhecer melhor a história de Dona Maria, também pude compreender melhor o seu diagnóstico. Esse é um ponto fundamental, não só na Psiquiatria, mas na Medicina como um todo. Existe uma máxima na Medicina que diz o seguinte: “diagnóstico errado, tratamento errado”. Embora não haja uma garantia absoluta de que, uma vez sendo feito o diagnóstico correto, tudo vai dar certo, quando o diagnóstico é feito de forma precisa, as chances de o paciente evoluir de forma mais favorável são muito maiores.

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