Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.

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Opinião

Artigo Geraldo Pinheiro: As histórias da internet e os perigos da automedicação

Em outras palavras: quando um remédio é necessário e o paciente não faz uso, provavelmente vai evoluir desfavoravelmente; quando, porém, um remédio não é necessário e o paciente faz uso, provavelmente vai evoluir desfavoravelmente também

por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 7 de novembro de 2025 às 16:45

Esses dias eu atendi uma paciente que me falou assim, como que surpreendida: “eu estou me dando muito bem com a sertralina!” Sertralina é um medicamento antidepressivo e ansiolítico, ou seja, serve para tratar a depressão e a ansiedade. Porém, na verdade, serve para tratar também outras
condições.

Essa paciente vinha de um outro psiquiatra, que já prescrevera a sertralina para ela. Intrigado, quis saber: “por que você se admira de ter se dado bem com a sertralina?” Ela responde: “porque eu vi, na internet, várias pessoas elaborando relatos de como ficaram mal com esse medicamento”.

A paciente em questão tinha depressão. O colega que a atendeu antes de mim prescreveu esse medicamento de forma correta, pois o tipo de depressão da paciente pode sim ser tratado com tal opção farmacológica. (Entretanto, a sertralina não será útil para tratar todos os tipos de depressão. Se o indivíduo tiver um Transtorno bipolar do humor e, nesse contexto de bipolaridade, apresentar-se com um episódio depressivo, a sertralina não será útil na maioria das vezes.)

Fiquei curioso e perguntei à paciente quais os relatos que ela lera na internet sobre o medicamento. Ela me disse que viu que o medicamento causava muita dor no estômago, diarreia, boca seca e que, nos primeiros dias de tratamento, podia fazer surgirem sintomas de ansiedade. Ainda perguntei: “por que você, mesmo lendo esses relatos, ainda tentou usar o medicamento?” Ela me respondeu: “eu não tinha outra opção; aí pensei que, se eu começasse a me sentir mal, era só parar o remédio.”

Esse diálogo que eu tive com essa paciente é muito útil para entendermos algumas questões fundamentais da Medicina e das Ciências. Na ciência médica, podemos dizer que boa parte das nossas condutas é baseado nos resultados dos estudos feitos com grandes populações. Quando se quer testar um medicamento – a sertralina, por exemplo – tomam-se grandes populações (2.000 pessoas em um estudo; 1.500 em outro; 3.000 em outro e assim sucessivamente) e observam-se os resultados. Procura-se verificar tanto os efeitos benéficos do medicamento, como também os efeitos colaterais. Ao fim de alguns bons estudos, é feita uma análise estatística – para verificar se o que está sendo observado não é fruto apenas do acaso – e chega-se a conclusões sobre o grau de eficácia daquele medicamento, assim como grau de segurança do mesmo, perfil de efeitos colaterais e perfil de efeitos favoráveis.

Ficamos sabendo dos resultados desses estudos porque os pesquisadores envolvidos em tais estudos publicam os resultados em jornais e revistas científicas. Então, se não estivermos diretamente relacionados a uma pesquisa sobre um determinado medicamento, saberemos dos resultados dessas pesquisas apenas se alguém – os próprios pesquisadores – “nos contar”.

Para sabermos se medicamento A ou B serve para tratar condição X ou Y e para sabermos dos efeitos colaterais daquele medicamento, precisamos ter acesso ao “disse-me-disse” do mundo da ciência. Porém, o “disse-me-disse” científico não é feito de qualquer jeito.

O que a paciente buscou de informação na internet sobre o medicamento não tem a seriedade dos estudos científicos. Considerando que ninguém estava mentindo nesses relatos (é claro que esta possibilidade – a da mentira – sempre é uma possibilidade, mas vamos desconsiderar os exemplos de má fé), temos que observar que a forma com que a paciente fez a sua pesquisa apresenta sérios problemas; nessa pesquisa, há várias possibilidades de enviesamento – conclusões errôneas sobre o medicamento que está sendo estudado. Os chamados vieses nos fazem ter a impressão errada de que tal medicamento tem este ou aquele benefício, este ou aquele problema, quando, na verdade, não tem. Muitas vezes, o que está sendo visto ali é um erro de viés ou algum resultado fruto apenas do acaso.

Tais problemas não estão presentes nos estudos mais sérios feitos no mundo científico. O primeiro viés relaciona-se ao tamanho da amostra. Tive o cuidado de perguntar quantos relatos ela teria lido. Ela me respondeu: “um monte, mais de 20 pessoas falando mal da sertralina”. Não, caro leitor, 20, 30, 40, ou 100 pessoas relatando efeitos colaterais sobre um medicamento não é muita coisa, não é algo substancial. No mundo científico, valorizamos relatos de milhares de pessoas. Quando atingimos esse quantitativo, estamos reduzindo a chance de os resultados observados serem frutos apenas do acaso.

O segundo viés relaciona-se ao tipo de amostra. Dificilmente, as pessoas publicam na internet resultados positivos relativos um medicamento. Ou, se publicam, esses relatos não aparecem, não chamam atenção, não são selecionados pelos algoritmos. O que dá mais “like” são os desfechos negativos. São os desfechos negativos também o que as pessoas mais se dispõem a publicar.

Outro problema é a possibilidade de a sertralina estar mal indicada para muitas dessas pessoas que não evoluíram bem com o medicamento. Em outras palavras, tais pessoas não deveriam estar recebendo esse medicamento em função da sua condição psiquiátrica, mas sim, outro medicamento.

É possível ainda que algumas dessas pessoas tenham apresentado efeito colateral nos primeiros dias do medicamento – que é um fenômeno possível – e tenham abandonado o medicamento ainda no início do tratamento, e já tenham elaborado um conceito negativo sobre o mesmo. Não sabem eles que, se tivessem continuado com o remédio, haveria uma grande chance de tal efeito colateral desaparecer – fenômeno bem comum, aliás.

Antes de eu explicar tudo isso para a paciente (sim, caro leitor, em algum momento da entrevista, eu encontrei oportunidade para explicar), ela ainda me perguntou: “por que esse psiquiatra me prescreveu esse medicamento, mesmo sabendo que podia dar todos esses problemas?”

Eu respondi: “o colega prescreveu um medicamento correto para o seu quadro clínico. Esses problemas que você encontrou na internet são histórias que não dizem respeito a você; dizem respeito àquelas que pessoas que fizeram uso do medicamento. Mesmo que tais pessoas tenham o mesmo diagnóstico que você, elas são outras pessoas; não são iguais a você. Cada um de nós guarda dentro de si particularidades, tanto no seu biologismo, quanto no seu psiquismo, na sua história de vida. O que deu certo para uma pessoa não necessariamente dará certo para você também; o que deu errado para outra pessoa não necessariamente dará errado para o seu caso também. Veja, inclusive, o que está acontecendo com você: está melhor e sem efeitos colaterais!”

*

Caro leitor, não existem medicamentos perfeitos. Todos eles possuem uma lista de benefícios e de problemas. Quando uma pessoa faz uso de um medicamento corretamente indicado – isto é: a pessoa tem uma doença e, para que tenha melhor recuperação daquela doença, é necessário que se faça uso daquele medicamento –, há uma boa chance (veja a palavra que eu usei: “chance”; não usei a palavra certeza) de o paciente melhorar e evoluir positivamente. Quando, porém, uma pessoa faz uso de um medicamento sem indicação correta – isto é: a pessoa tem uma doença, mas não havia necessidade de se fazer uso daquele medicamento, ou porque aquela doença deveria ser tratada com outro medicamento, ou até porque aquela doença deveria ser tratada sem medicamento – as chances (ou riscos) de haver uma evolução desfavorável são razoavelmente grandes.

Em outras palavras: quando um remédio é necessário e o paciente não faz uso, provavelmente vai evoluir desfavoravelmente; quando, porém, um remédio não é necessário e o paciente faz uso, provavelmente vai evoluir desfavoravelmente também. O conhecido ditado – “se bem não fizer, mal não faz” – não é correto. Se um medicamento não estiver indicado, então ele não fará bem e ainda poderá fazer mal.
Toda essa análise não é simples e o paciente não pode ter a obrigação, nem a responsabilidade, de tomar decisões sobre uso ou não uso de medicamentos. Assumir essa responsabilidade se chama automedicação.

O profissional médico é quem está habilitado para fazer essas avaliações e definir melhor que tratamento seguir. Pelas razões expostas acima, não é interessante fazer pesquisas na internet e, a partir de tais pesquisas, o usuário de medicamento tomar decisões sozinho sobre o uso ou não uso de um certo medicamento. As leituras na internet podem até ser feitas. Porém, o mais aconselhável é que esse paciente converse com o seu médico sobre o que leu e sobre as dúvidas que porventura tenham surgido.

As decisões que nós, profissionais da saúde, tomamos não são elaboradas em “achismos”, mas em relatos sérios, não-enviesados, de estudos realizados em ambientes controlados, com números enormes de pacientes. O disse-me-disse da internet está muito aquém do disse-me-disse dos estudos científicos. Se fôssemos nos basear nos relatos de internet e procurarmos um medicamento que deu certo para todo mundo – e que não deu errado para ninguém –, teríamos que mudar de profissão, porque não conseguiríamos prescrever nenhum medicamento.

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