Potiguar que viveu 13 anos com um homem com Transtorno de Personalidade Narcisista conta como escapou de um ciclo de abusos - Foto: Reprodução

Cotidiano

Reportagem “Fui vítima de um narcisista”: quando o transtorno de personalidade afeta silenciosamente um relacionamento

Potiguar que viveu 13 anos com um homem com Transtorno de Personalidade Narcisista conta como escapou de um ciclo de abusos. Psiquiatra e psicóloga explicam os sinais do transtorno e alertam para o risco da banalização do diagnóstico

por: NOVO Notícias

Publicado 21 de julho de 2025 às 15:00

“Pessoa que mente compulsivamente e trai sem sentir nada.” Foi com essa frase que C.M., 48 anos, iniciou sua busca pela internet, em desespero, tentando entender o comportamento do companheiro com quem viveu por 13 anos e teve duas filhas. O que encontrou a fez perceber que não estava louca, como frequentemente era levada a crer. Estava, sim, em um relacionamento abusivo com um homem que apresentava traços claros do Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN).

O início foi digno de conto de fadas. Aos 34 anos, C.M. conheceu o então entregador que, com declarações de amor e gestos generosos, a fez acreditar que havia encontrado o parceiro ideal. Em menos de um ano, já estavam morando juntos. Veio a primeira filha e a promessa de uma vida familiar sólida. “Ele me deu tudo o que eu queria ouvir, tudo o que uma mulher sonha. Até o ciclo de abusos começar”, relata.

O abuso não se manifestava com gritos nem tapas. Era sutil, constante e devastador: infidelidades escondidas, manipulação emocional, sabotagem financeira. Aos poucos, C.M. foi abandonando sua carreira como gerente para se dedicar à casa e às filhas. Ele incentivava: dizia que daria conta de tudo.

Mas o que veio foi isolamento, dependência emocional e, depois, descobertas sucessivas de traições. “Quando descobri que ele tinha um caso que durou dois anos, eu já estava fora do mercado de trabalho, sem recursos, com a autoestima destruída”, conta.

A relação era marcada por controle e culpa. “Tudo era minha culpa: se ele não conseguia algo, era por minha causa. Se brigávamos, eu era a errada. Ele usava meus cartões e deixava dívidas. E eu ainda achava que poderia mudá-lo.”

As dores emocionais se transformaram em dores físicas. “Passei meses tratando [dores] no nervo ciático. Só melhorei quando saí da relação”, disse. A separação, há um ano e meio, foi o primeiro passo de um longo caminho de reconstrução.

Entendendo o transtorno

O Transtorno de Personalidade Narcisista é um padrão psicológico caracterizado por um senso inflado de autoimportância, necessidade extrema de admiração e ausência de empatia pelos outros. Segundo o psiquiatra Gustavo Dias Mendes, da Maternidade Escola Januário Cicco (MEJC-UFRN), indivíduos com TPN “tendem a apresentar comportamentos que visam impressionar os outros, exigindo dedicação nos relacionamentos sem reciprocidade”.

Para ser diagnosticado com o transtorno, a pessoa precisa manifestar, de forma persistente e inflexível, ao menos cinco de nove critérios clínicos, incluindo: exagero de conquistas, fantasia de poder, sentimento de superioridade, necessidade de admiração e exploração interpessoal.

Apesar de o diagnóstico formal ser complexo — e muitas vezes negligenciado —, estudos internacionais estimam que de 1% a 2% da população seja afetada, com predominância entre homens jovens. No Brasil, e especialmente no Nordeste, ainda há pouca pesquisa específica.

“Não era amor, era dependência”

Sem recursos para psicoterapia, C.M. encontrou força em vídeos de especialistas nas redes sociais, onde começou a compreender o padrão narcisista. “Passei a estudar, acompanhar psicólogos no Instagram e no YouTube. Descobri que não era amor, era uma dependência emocional, financeira e psicológica. Ele entrou na minha mente de tal forma que eu achava que nunca ia conseguir sair.”

Para a psicóloga e neuropsicóloga Tatiana Assunção, é preciso cautela ao identificar o transtorno. “Nem toda pessoa vaidosa ou egocêntrica é narcisista. O que diferencia é a intensidade e rigidez desses comportamentos. No TPN, tudo gira em torno da pessoa, e ela costuma manipular quem está ao redor para garantir essa centralidade”, explica.

Tatiana alerta também para o risco da banalização do termo nas redes sociais. “Hoje vemos muitos perfis apontando o dedo e dizendo ‘fulano é narcisista’ com base em episódios isolados. É preciso cuidado. O diagnóstico é clínico e deve ser feito com base em critérios técnicos, como os definidos no DSM-5, manual de referência da saúde mental.”

E as vítimas?

C.M. hoje vive com as filhas na casa da irmã, em São Paulo. A mais nova faz acompanhamento psicológico com ajuda financeira da família. A mais velha se recusa a ver o pai e carrega mágoas profundas. “A mais velha entrou em pânico ao vê-lo passar na rua.”

Mesmo separada, C.M. ainda enfrentou perseguições, difamações e assédios. “Ele só me deixou em paz depois que procurei a noiva atual dele e contei tudo. Ela terminou com ele, mas voltou. Eu entendo. Eu também voltei várias vezes antes de conseguir sair.”

Hoje, ela segue cuidando da própria saúde mental e da reconstrução da autoestima. “Ainda não quero outro relacionamento. Quero cuidar de mim, das minhas filhas. Quero paz.”

O tratamento do TPN não é simples. Segundo os especialistas, o eixo central é a psicoterapia, que visa ressignificar padrões de autoestima, relações interpessoais e desenvolver empatia. Medicamentos podem ser usados para tratar sintomas associados, como ansiedade ou depressão, mas não curam o transtorno.

“A pessoa com TPN também sofre”, afirma a psicóloga Tatiana. “Por trás de toda essa grandiosidade, geralmente há um sentimento profundo de inferioridade. Mas poucos buscam ajuda”, comentou.

O psiquiatra Gustavo Dias reforça a importância de a sociedade compreender melhor o transtorno. “Quanto mais cedo o acompanhamento começar, maiores as chances de melhorar a qualidade de vida de todos os envolvidos.”

C.M. escapou de um ciclo de dor graças à informação. “Se eu não tivesse pesquisado, não sei onde estaria. Hoje, quero que outras mulheres saibam que não estão sozinhas, que não estão erradas, e que há saída.” E conclui: “A pior prisão é aquela que você não vê. Mas a liberdade começa quando a gente dá nome ao que está vivendo.”

Como identificar sinais de TPN em um parceiro

Segundo o DSM-5, são nove os critérios para diagnóstico de TPN. Se ao menos cinco estiverem presentes, é preciso buscar avaliação com um profissional da saúde mental:

  1. Senso exagerado de autoimportância;
  2. Fantasias de poder, sucesso ou amor ideal;
  3. Crença de ser especial e único;
  4. Necessidade excessiva de admiração;
  5. Expectativa de tratamento especial;
  6. Comportamento explorador nas relações;
  7. Falta de empatia;
  8. Inveja dos outros ou crença de que é invejado;
  9. Atitudes arrogantes ou presunçosas.
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