Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.
O TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade/Impulsividade) é uma condição muito frequente em nosso meio. Na verdade, não só no nosso meio, sua existência é pervasiva entre as diversas sociedades. De uns tempos para cá, o assunto tem aparecido muito nas mídias. Como sempre, verdades e mitos são propalados pelos comunicadores. E é claro que, embora a proposta desse texto seja jogar um pouco de luz sobre o assunto, não é possível alguém fazer um autodiagnóstico apenas a partir da leitura desse texto (ou de quaisquer outros textos mais técnicos do que este). O diagnóstico é uma atividade complexa, que inclui não apenas checar se um indivíduo tem estes ou aqueles sintomas; sempre requer uma avaliação médica. Na verdade, algumas vezes, precisamos de mais de uma avaliação. Repetindo o psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1926): o diagnóstico psiquiátrico é longitudinal.
Observando os significados das letras que compõem a sigla da condição e fazendo uma aproximação grosseira, costuma-se dizer que o TDAH é um transtorno em que o indivíduo é desatento, acelerado e impulsivo. A letra “T” da sigla significa “Transtorno”; as letras “DA” da sigla, significando “déficit de atenção”, se responsabilizam pela característica desatenta. A letra “H” da sigla significa hiperatividade; porém, frequentemente, a hiperatividade vem acompanhada pela impulsividade.
É importante destacar, porém que nem todos os portadores de TDAH apresentam-se com o polo da desatenção (DA) e com o polo da hiperatividade/impulsividade (H) simultaneamente. É possível que um indivíduo tenha apenas desatenção. Nesses casos, dizemos que o indivíduo tem TDAH com apresentação predominantemente desatenta. Todavia, é possível que um indivíduo se apresente apenas com o polo hiperatividade/impulsividade. Nesses casos, dizemos que o indivíduo tem TDAH com apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva. Quando o mesmo indivíduo se apresenta com os dois polos, dizemos que ele tem TDAH com apresentação combinada.
Dizemos ainda que o TDAH é uma condição do neurodesenvolvimento. Todos nós não nascemos prontos. Quando nascemos, o nosso cérebro ainda passará por modificações quantitativas (grosso modo, o nosso cérebro ainda vai crescer bastante) e qualitativas (isto é, explicando em poucas palavras, as células que compõem o nosso cérebro – as principais são os neurônios – vão se ajustando em suas localizações e em suas conexões). Chamamos esse processo de neurodesenvolvimento. Ele se inicia ao nascimento e se encerra, em média, por volta dos 25 anos de idade. Quando dizemos que o TDAH é uma condição do neurodesenvolvimento, estamos dizendo que as manifestações clínicas se apresentam necessariamente no período do neurodesenvolvimento. Entretanto, segundo a classificação mais moderna – elaborada pela Associação Americana de Psiquiatria – os sintomas devem começar a se apresentar antes dos 12 anos de idade. Portanto, quem tem TDAH, na visão da Psiquiatria moderna, tem TDAH desde a infância.
Então, quando o indivíduo, já adulto, se descobre com TDAH, ele já passou por anos e anos, décadas com essa condição. Tal distúrbio não é como a depressão em que o indivíduo tem episódios depressivos. Mesmo as condições depressivas mais crônicas têm períodos de melhora e piora. Em contrapartida, o transtorno que estamos discutindo não acontece de forma episódica. O indivíduo portador desta condição irá conviver diariamente com as características apresentadas e por muito tempo.
Por outro lado, é possível haver remissão total e espontânea. De forma alternativa, é possível haver – se não remissão total – melhora espontânea. Aliás, essa é a evolução mais comum. A maioria das crianças com TDAH se tornarão adultos sem TDAH ou com sintomas leves. Contudo, paralelamente, existem outros caminhos possíveis: por exemplo, é possível que uma criança tenha TDAH com apresentação hiperativa/impulsiva e se transforme num adulto apenas desatento ou vice-versa; é possível também que uma criança tenha TDAH em sua apresentação combinada e evolua para um adulto apenas hiperativo.
Em função do quão controlado é o ambiente em que essa criança cresce, do quanto tal ambiente é originador de demandas para a criança/adolescente, de quanto o indivíduo, ao longo da vida, conseguiu desenvolver estratégias para superar as dificuldades relativas ao TDAH, ele poderá se apresentar de uma ou outra forma na vida adulta, quando completado o neurodesenvolvimento. Claro que eventos ocorridos na infância e adolescência, traumáticos ou não, além da carga genética que o indivíduo já herda dos seus pais, participam no campo de influências que vão definir se o indivíduo adulto é portador ou não de TDAH, em que forma de apresentação ele vai se encontrar e que nível de gravidade da doença vamos presenciar.
Perceber-se desatento e acelerado não é suficiente para que o diagnóstico de TDAH seja definido. Em primeiro lugar, esta condição não é a única da Psiquiatria que promove desatenção, aceleramento e impulsividade. Além do mais, não é qualquer desatenção nem qualquer hiperatividade que nos permite dizer que uma pessoa é portadora do transtorno.
Para se fazer esse diagnóstico, são exigidas condições mínimas que, uma vez contempladas, verificamos que o indivíduo tem a doença. Essas condições incluem: um certo número mínimo de sintomas relativos ao polo da desatenção e/ou relativos ao polo da hiperatividade/impulsividade, que se manifestam ao longo de um certo período mínimo de tempo; é necessário também que tal condição tenha se iniciado na infância (abaixo de 12 anos); também é uma exigência que as características do transtorno sejam pervasivas, isto é, ocorram em mais de um ambiente.
E, sobretudo, é necessário que as características próprias do transtorno gerem sofrimento e/ou prejuízo em sua funcionalidade. Em outras palavras, utilizando uma das máximas da Psiquiatria: “para ter um transtorno, deve ser um transtorno”.
Se – mesmo o indivíduo apresentando certo número mínimo de sintomas, e mesmo verificando-se que tais sintomas invadem diversos ambientes da rotina do sujeito, mesmo que sejam excluídas outras condições psiquiátricas – o indivíduo não se sentir prejudicado, em sua funcionalidade, nem apresentar um sofrimento clinicamente significativo, diremos que, embora ele tenha características concernentes ao TDAH, ele não tem o diagnóstico de TDAH – ele não tem o Transtorno (T).
Como já foi explicado, o indivíduo adulto que, quando criança, tinha TDAH, convive com o TDAH “desde sempre”. É possível que, ao longo de toda essa jornada, ele tenha desenvolvido mecanismos, estratégias para superar ou minimizar alguns daqueles sintomas que antes o incomodavam. Lembro-me de uma paciente que dizia que só vivia perdendo seus objetos pessoais (um dos sintomas do polo desatento do TDAH) e desenvolveu a estratégia de definir, de forma obstinada, um lugar específico para deixar os seus objetos mais importantes. Dizia ela: “nunca mais perdi nenhum objeto; mas, quando, por acaso, não coloco os objetos onde previamente defini, fico perdida; sofro até encontrar porque não vou ter a menor ideia de onde posso ter deixado a chave do carro, o celular, óculos, etc.”
Outra paciente dizia que se incomodava muito quando os outros a interrompiam até que ela mesma recebeu uma crítica de uma colega de trabalho que disse que a paciente interrompe muito os outros e se mete em assuntos que não lhe dizem diretamente respeito – dois sintomas compatíveis com o polo da impulsividade. Ela me disse: “defini pra mim mesma que isso é uma falta de educação; passei a fazer um treinamento para evitar tal comportamento; quando estou numa reunião, pego logo um lápis e um bloco de anotações e tudo o que eu gostaria de falar vou escrevendo; percebi que não interrompo mais os outros nas reuniões”. Esses são dois exemplos de estratégias compensatórias que o sujeito pode desenvolver para mitigar uma ou outra característica do TDAH.
Por outro lado, é possível nos depararmos com adultos que claramente apresentam TDAH e dizem que, na infância, não tinham esse diagnóstico. Isso é uma contradição para o que foi dito nesse texto, uma vez que eu afirmei que o TDAH é uma condição do neurodesenvolvimento. Entretanto, ocorre que, algumas vezes, o ambiente em que essa criança vive é muito controlado: a criança vive com pais muito exigentes e/ou a escola é muito rígida. É possível que esse ambiente e as pessoas com quem a criança convive sejam continentes, evitando que certas características do TDAH se sobressaiam, contendo essas características. Por outro lado, também é possível que as demandas a que esse indivíduo é submetido estão aquém das suas capacidades intelectuais e, mesmo com as dificuldades impostas pelo TDAH, o indivíduo consegue avançar sem maiores prejuízos. E, desta forma, o diagnóstico na infância pode passar despercebido.
Como acontece para todas as doenças, a Medicina procura identificar os níveis de gravidade para cada condição e se há ou não necessidade de tratamento farmacológico. Para o TDAH, não é diferente. É claro que não é correto prescrever medicamentos para qualquer desatenção ou hiperatividade que se nos apresenta; da mesma forma, também não é correto deixar uma pessoa, que claramente está em prejuízo na sua funcionalidade e em sofrimento significativo devido ao TDAH, sem tratamento farmacológico. Porém, nem todo mundo está nessas duas pontas desse espectro que acabei de elaborar. Na verdade, a maioria das pessoas que nos procura está na zona cinzenta – em algum lugar entre o mínimo de sintomas e situações de extrema gravidade.
O profissional que atende essa pessoa deve ter a parcimônia para, em primeiro lugar, definir se o que está à sua frente é, de fato, um TDAH (ou uma outra condição psiquiátrica ou até não-psiquiátrica). Uma vez definido que é sim TDAH, verificar se há mesmo necessidade de tratamento farmacológico e se o tratamento farmacológico, uma vez escolhido, trará mais benefícios do que malefícios. Porém, para além dessa discussão – se vamos ou não vamos “passar um remédio” –, o sujeito que está em processo de sofrimento e tendo prejuízos em sua funcionalidade pode e deve procurar ajuda. Receber uma avaliação, identificar e entender o que está acontecendo consigo mesmo já é, muitas vezes, um excelente elemento terapêutico. Como eu costumo dizer: ninguém precisa tentar se acostumar ao sofrimento; sempre é possível melhorar e frequentemente, para conseguir essa melhora, é necessária uma ajuda profissional.
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