Jeoás Nascimento dos Santos, advogado, pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Militar. Foto: Cedida

Jeoás Nascimento dos Santos, advogado, pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Militar. Foto: Cedida

Opinião

Artigo PEC da Segurança e a guerra não declarada: a Urgência do reconhecimento do conflito armado no Brasil

O ponto essencial da discussão reside no preenchimento do requisito de controle territorial estável por parte do grupo armado

por: Jeoás Nascimento dos Santos, advogado, pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Militar*

Publicado 4 de novembro de 2025 às 17:41

Os eventos ocorridos no Rio de Janeiro por ocasião da “Operação Contenção” – caracterizada por elevado contingente de agentes e um número significativo de 121 óbitos, transcenderam a esfera da criminalidade ordinária, instigando um debate urgente: a adequação do cenário à qualificação de Conflito Armado Não Internacional (CANI) perante o Direito Internacional Humanitário (DIH).

A utilização do termo “guerra” por autoridades estatais, associada à natureza e escala das hostilidades, demanda uma análise técnica sobre o regime jurídico aplicável: se o da violência criminal interna (regido pelo direito doméstico e pelos direitos humanos) ou o dos conflitos armados (regido pelo DIH).

O princípio consolidado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e pela jurisprudência internacional estabelece a concomitância de dois critérios cumulativos para a configuração de um CANI: Intensidade das Hostilidades, que refere-se ao nível e à duração dos confrontos e a Organização das Partes Beligerantes, que pressupõe que o grupo armado não estatal possua uma estrutura de comando, capacidade operacional coordenada e logística sustentada.

Aplicados tais critérios ao episódio em questão, observa-se:

•⁠ ⁠Intensidade: A operação foi a mais letal da história do estado, com emprego de meios aéreos (helicópteros, drones), utilização de artefatos explosivos, apreensão de mais de 90 fuzis e continuidade das ações por dias, configurando hostilidades de alta intensidade.
•⁠ ⁠Organização: O grupo armado envolvido (Comando Vermelho) demonstra possuir cadeia de comando hierarquizada, controle logístico e financeiro, domínio territorial de facto e emprego tático-coordenado de armamento de guerra, distanciando-se da mera delinquência difusa.

O ponto essencial da discussão reside no preenchimento do requisito de controle territorial estável por parte do grupo armado, necessário para a potencial aplicação do Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra.

Embora exista uma presença paraestatal em comunidades, a doutrina jurídica nacional majoritária ainda entende que tais áreas permanecem sob a soberania formal do Estado, que realiza operações esporádicas de retomada. Esta intermitência no controle dificulta o enquadramento automático no patamar mais elevado do Protocolo II.

Contudo os critérios do Artigo 3º Comum às Convenções de Genebra – que exige um limiar menor – estão plenamente configurados, caracterizando um CANI em seu patamar basal. Alternativamente, propõe a categoria de “pré-CANI” ou “CANI de alta frequência” para descrever a gravidade do cenário brasileiro.

A correta qualificação do cenário é necessária, pois define o regime jurídico aplicável e os parâmetros de atuação estatal. Se caracterizado como CANI haverá a aplicação do Direito Internacional Humanitário, a ativação de regras de condução de hostilidades como distinção, proporcionalidade e precaução, a proibição absoluta de execuções sumárias e tratamento digno para feridos, detidos e mortos e o grupo armado será equiparado a combatente, sem direito ao status de prisioneiro de guerra. Já se mantido como distúrbio interno haverá a prevalência do direito interno e dos tratados de direitos humanos, uso da força regrado pela estrita necessidade, adequação e proporcionalidade policial, foco na prisão em flagrante e no devido processo legal, com investigação reforçada minuciosa sobre letalidade.

A não caracterização do CANI, também gera um vácuo regulatório, onde a ação estatal pode tender a uma “militarização do conflito” sem as salvaguardas e limites específicos do DIH, potencializando violações e fragilizando a legitimidade da atuação estatal.

PEC da Segurança com ajustes

Nesse cenário, a PEC 18/2025 (PEC da Segurança Pública) é uma oportunidade histórica para abordar essa lacuna normativa. A proposta, em sua versão atual, busca reorganizar o sistema de segurança, mas não enfrenta diretamente a qualificação de cenários de extrema violência.

No entanto, a PEC precisa ser enriquecida com algumas emendas que tratam de: incluir uma cláusula de qualificação para situações caracterizadas por “intensidade de hostilidades e organização de grupos armados no território nacional”, prever a ativação de protocolos especiais de segurança e uma coordenação federativa específica para “cinéticas de guerra” internas, estabelecer critérios objetivos para a definição de tais situações excepcionais, assegurando base constitucional para a atuação estatal em estrita conformidade com o Estado de Direito, preservar e reforçar os mecanismos de controle externo (Ministério Público, Judiciário), assegurando que o reconhecimento de um CANI não implique a suspensão de garantias fundamentais.

O episódio da “Operação Contenção” no Rio de Janeiro apresenta fortes indícios da configuração de um Conflito Armado Não Internacional em sua forma basal (Art. 3º Comum). A persistente negação desta realidade fática e jurídica submete o Estado a um regime legal inadequado, com consequências potencialmente nefastas para a proteção de civis, para os próprios agentes de segurança e para a eficácia global da política de segurança pública.

O caminho proposto é o do enfrentamento jurídico preciso: reconhecer o cenário de CANI para, a partir desse marco legal correto, coordenar uma estratégia nacional integrada, investigar com independência eventuais excessos e desarticular a cadeia logística que sustenta a máquina bélica dos grupos armados organizados.

*Especialista em Sistema de Proteção Social dos Militares Estaduais. Membro e diretor de relações institucionais da Comissão Nacional de Direito Militar da Associação Brasileira de Advogados (ABA). Diretor de Relações Institucionais da Federação Nacional de Entidades Representativas de Praças (ANASPRA). Membro da Comissão de Direito Militar da OAB/RN e da OAB/BA. Pós-graduando em Segurança Pública.

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