Geraldo Pinheiro é médico psiquiatra e escreve para o NOVO quinzenalmente.
Inspirado no mito de Narciso (discutimos o mito de Narciso no nosso texto anterior, chamado “O Narciso), a Psiquiatria e a Psicologia modernas definem o que hoje se chama Transtorno da Personalidade Narcisista (TPN). Sabedor da presença deste tema nas mídias atuais (algumas vezes, com imprecisões e erros), proponho-me aqui, neste texto, explicar e discutir, de forma breve o TPN.
O TPN se caracteriza principalmente por um padrão de grandiosidade que se manifesta de forma pervasiva em várias formas de o indivíduo se comportar e/ou de falar. O indivíduo portador do TPN tem uma necessidade de ser admirado pela grandiosidade que acredita possuir. Além disso, essa pessoa também apresenta, de forma característica, uma falta de empatia (empatia, resumindo, é a capacidade de se colocar no lugar do outro e, dessa forma, tentar entender suas emoções, sentimentos e o quanto esse outro é afetado por experiências; é a tentativa genuína de tentar compreender o outro ao se conectar emocionalmente com esse outro humano).
Essas características – padrão difuso de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia – estão presentes, não em algumas fases da vida, mas de forma contínua. O sujeito não fica assim de vez em quando, ele é assim, é a sua personalidade (veja que o TPN é um transtorno da personalidade; ou seja, quem é portador do TPN apresenta um transtorno que é consequente de sua personalidade, do seu jeito de ser).
Nos parágrafos seguintes, veremos exemplos de como esse padrão de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia pode ser reconhecido. O indivíduo se acha uma pessoa muito importante. Acaba exagerando o reconhecimento próprio dos seus talentos e de suas conquistas. É possível que ele
tenha talentos, qualidades e sucessos. Porém, nesse transtorno, há um exagero, por parte do sujeito, na percepção e na divulgação dessas qualidades e vitórias. Ele (ou ela) acaba acreditando ser possível (e real) o seu poder ilimitado em qualquer esfera do conhecimento e/ou das ações humanas, incluindo relações amorosas, relações de trabalho, de conhecimento acadêmico (ou de qualquer forma de conhecimento), de beleza física e/ou de beleza virtuosa, etc.
O portador de TPN acredita ser uma pessoa muito especial, mais especial do que cada ser humano já tem em si de especial. Ele entende que, por ser “único”, só será compreendido por mentes elevadas. A maioria das pessoas (e/ou instituições), não estando no mesmo nível de suas inteligência e habilidades, não terão competência para avaliá-lo, entendê-lo, compreendê-lo. Podem se surpreender quando o elogio que esperam receber está aquém de suas expectativas e é fácil interpretar isso como uma incapacidade do outro – por ser muito inferior – em reconhecer seus talentos.
Ao mesmo tempo, não reconhece as vitórias conseguidas por trabalhos em equipe. Sempre é ele que fez o trabalho sozinho ou compreende que a participação dos outros foi irrisória. Por outro lado, ele compreende que possui direitos diferentes e especiais em relações aos outros. Ele define que merece uma atenção especial, ser tratado de forma favoravelmente diferenciada. Pode ficar furioso quando não recebe uma atenção especial e servil. Sua autoestima é espelhada (para usar uma referência ao mito de Narciso) pela competência e valor que atribui àqueles a quem julgam serem capazes de se associar.
Uma outra característica, como uma esteira do parágrafo anterior, é que esse indivíduo se mostra um explorador em relação às outras pessoas. Costuma tirar vantagens nas mais diversas situações. Elabora estratégias para sobrecarregar os outros, delegar exageradamente funções (que deveriam ser suas) aos outros.
Pretendem tirar vantagens dos outros em vários quesitos, tais como: financeiro, intelectual, social, emocional. Quem convive próximo a um narcisista (portador do TPN), sente-se explorado constantemente por essa pessoa, que, além de tudo isso, ainda exige admiração pelos seus supostos feitos e talentos.
Esse indivíduo, além de não ser empático, ainda é frequentemente invejoso ou acredita que os outros o invejam. E características de comportamentos outros como ser arrogante, insolente, prepotente, pretensioso, esnobe, desdenhoso também costumam estar presentes nesta personalidade, no seu dia a dia, nas suas falas, no seu convívio social. Podem não conseguir compreender o quanto ferem os outros com seus comentários e comportamentos. Quem convive com um narcisista sentirá que há
ali uma frieza emocional e uma falta de interesse pelo outro.
Entretanto, embora esses comportamentos passem a saliente impressão de que tais indivíduos tenham uma autoestima sobrelevada, é possível que, na verdade, eles tenham uma autoestima frágil. É possível que, internamente, existam dúvidas sobre as suas verdadeiras qualidades e essas dúvidas é que, muitas vezes, o impulsionam pela busca incessante de admiração dos outros. Com isso, espera – consciente ou inconscientemente – diminuir o sofrimento da possível ausência de qualidades.
Antes de concluir esse texto, é necessário que sejam feitas algumas ressalvas. O presente material não pretende ser um guia diagnóstico sobre o TPN; ele não esgota todas as características, nem define as restrições necessárias para a definição diagnóstica de acordo com os padrões atuais observados na prática da saúde mental.
Então é incorreto ler esse texto e achar que é possível fazer diagnósticos de Narcisismo para as pessoas. Apenas o profissional de saúde mental – Psiquiatra – pode fazer esse diagnóstico depois de muito entrevistar (o paciente e familiares/acompanhantes) e bem conhecer o paciente em questão.
Além disso, como é de praxe na psiquiatria, as características de um transtorno se assemelham às características de outros tantos transtornos. Fazer essa distinção – perdoe-me pela necessária repetição –, o que chamamos de diagnóstico diferencial, é papel do Psiquiatra.
Ainda uma outra ressalva precisa ser feita. É possível que uma pessoa não portadora do TPN (e não portadora de nenhum transtorno mental) tenha uma ou outra característica do TPN. Em alguns momentos da vida, em algumas fases da vida, é possível que tenhamos um ou outro comportamento, fala, sentimento ou pensamento que sejam semelhantes aos dos narcisistas. Isso não faz dessa pessoa um narcisista.
Desta forma, o profissional que avalia um indivíduo também deve exercer o diagnóstico diferencial entre o TPN e a dita normalidade. E, ainda, como dissemos anteriormente, o Transtorno de Personalidade reúne características que são contínuas, constantes, é o jeito de ser da pessoa. Ninguém fica narcisista em algum momento da vida (como apelo à precisão, preciso dizer que lesões cerebrais ou processos inflamatórios cerebrais, como, por exemplo, tumores em alguns setores do cérebro, podem modificar a personalidade de uma pessoa); ou ela é ou não é narcisista. Todavia é possível que algumas características do transtorno entrem e saiam da personalidade de cada um de nós, vão flutuando ao longo da existência das pessoas.
O objetivo desse texto, se não é orientar para o diagnóstico, é buscar bem informar as pessoas sobre a existência e sobre as características desse transtorno, cuja prevalência gira em torno de 3% da população geral. Embora o narcisista faça os que estão próximos a ele sofrer (como acredito que ficou evidenciado nos parágrafos acima), ele também sofre. Ele sofre, mas pode reduzir esse sofrimento, uma vez receba tratamento para essa condição. Existe tratamento para o TPN. Embora não existam remédios para tratar esse transtorno, existe um tratamento denominado psicoterapia. É claro que, justamente devido às características próprias do transtorno, é provável que esse indivíduo tenha dificuldade (chamamos isso de falta de insight) em perceber que há um problema com ele mesmo e que esse problema pode ser resolvido, tratado. Muitas vezes, são os familiares, amigos que perceberão ou sentirão as características narcisísticas e apontarão a necessidade de tratamento.
Sei que não é fácil exercer esse papel, mas não é impossível.
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