Capa do relatório produzido que monitorava policiais

Cotidiano

Investigação Policiais do RN monitorados durante governo Bolsonaro processam a União

Agentes de segurança pública foram identificados como “antifascistas” em relatório produzido pela Secretaria de Operações do Ministério da Justiça; ação por danos morais define monitoramento como “perseguição política”

por: Jalmir Oliveira

Publicado 7 de julho de 2025 às 15:40

Três policiais militares, um bombeiro militar e uma técnica forense do Rio Grande do Norte ingressaram com ações na Justiça Federal contra a União por danos morais. Eles alegam perseguição política após terem seus nomes incluídos em um relatório da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça, elaborado em 2020, durante o governo de Jair Bolsonaro.

À época, o relatório federal, classificado como sigiloso, analisava ações promovidas por um suposto movimento “Policiais Antifascismo”. Atividades de agentes de segurança foram monitoradas em 17 estados, e o documento listava 579 servidores. Entre os nomes, estão servidores da área de segurança pública do Rio Grande do Norte — cujos nomes serão preservados. Alguns aparecem com nome, cargo, foto e perfil em rede social.

O NOVO obteve acesso a uma cópia do documento produzido pela Seopi. Nomeado como “relatório de inteligência Nº 381/2020”, datado de 9 de junho de 2020, a peça descreve a “Ação Antifascista Brasil” como um movimento descentralizado de ideologia de esquerda, que engloba ideais do comunismo, anarquismo e sindicalismo.

O relatório aponta que a intensificação das atividades do grupo foi impulsionada por uma combinação de fatores: os protestos antirracistas nos Estados Unidos após a morte de George Floyd [homem negro assassinado em 25 de maio de 2020, estrangulado pelo policial branco Derek Chauvin], a polarização política no Brasil e a crise da Covid-19, resultando, à época, na organização de manifestações em diversas cidades do país.

“Os grupos têm se articulado para comparecer aos manifestos que são a favor do governo [Jair Bolsonaro], por eles considerados fascistas, e a favor da intervenção militar e fechamento do STF, visando manifestar oposição”, apontou o relatório federal.

O advogado Gustavo Freire, responsável pela defesa dos agentes de segurança pública que ingressaram com as ações, reforça que o monitoramento é “escancaradamente inconstitucional”, pois afeta direitos como a liberdade de expressão e a liberdade de associação, além de atentar contra o pluralismo político.

Os policiais argumentam que o relatório, produzido sem base legal, resultou em retaliações como transferências, investigações administrativas, perda de cargos de confiança e exclusões de processos seletivos. Também afirmam que a divulgação do dossiê comprometeu suas carreiras e integridade pessoal.

“Muitos dos investigados em âmbito nacional chegaram a ser retaliados, perdendo promoções, sendo aposentados e até demitidos, sem falar nas consequências na saúde mental. Mesmo os que não sofreram retaliação direta passaram pela aflição e ansiedade de serem potenciais alvos dela”, pontua o advogado Gustavo Freire.

As ações dos agentes potiguares pedem o pagamento de R$ 50 mil a título de indenização por danos morais. A defesa também sustenta que o direito à reparação é imprescritível por se tratar de violação a direitos humanos. Subsidiariamente, pede que o prazo para contagem da prescrição seja considerado a partir da ciência do conteúdo do relatório.

A defesa alega que a produção e o compartilhamento do relatório violaram direitos fundamentais, como liberdade de expressão, de associação e privacidade, previstos na Constituição Federal e em tratados internacionais. “Uma vez que as investigações foram feitas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, órgão da União, a legislação prevê que, nestes casos, é ela a responsável pelas ações de seus agentes”, aponta Gustavo Freire.

O advogado Gustavo Freire explica que, embora as investigações e o relatório sejam de 2020, só agora, em 2025, uma articulação nacional de todos os investigados obteve acesso às informações, após solicitação por meio da Lei de Acesso à Informação. Com isso, foi possível o ingresso das ações judiciais contra a União.

Vale lembrar ainda que, em 2020, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do monitoramento realizado pela Seopi, ao julgar a ADPF 722. A decisão considerou que o Estado não pode produzir dossiês com base em convicções políticas ou ideológicas. Ministros do STF, como Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Gilmar Mendes, ressaltaram que órgãos públicos não podem “bisbilhotar, fichar ou estabelecer classificação” de cidadãos, “listar inimigos do regime”, nem realizar “investigação enviesada” ou que viole o “pluralismo político”.

“Esta inconstitucionalidade foi reconhecida pelo próprio STF. O fato de a investigação remontar a práticas autoritárias de perseguição política, típicas da ditadura empresarial-militar pela qual passou o Brasil, realça o caráter político e pedagógico das condenações nestes processos, necessárias no sentido de contribuir para a consolidação de uma cultura que desaprove medidas do tipo”, detalhou o advogado.

Em resposta ao NOVO, o Ministério da Justiça (MJSP) informou que “qualquer ação praticada à época (5 anos atrás) se deu no âmbito de uma estrutura que não mais existe”.

O órgão ressaltou que, atualmente todas as informações aos interessados, estão sendo prestadas por meio da Lei de Acesso à Informação, como recomenda a lei. “O MJSP esclarece que não efetua o referido monitoramento. Portanto, não existem resultados a serem mencionados”, justificou.

Sobre a legalidade do monitoramento, o Ministério esclarece que é necessário questionar quem realizou o monitoramento à época, uma vez que a atual gestão não conduz tal atividade.

Quanto à eventual ilegalidade, ressaltou o MJSP, conforme informações disponíveis, as medidas judiciais cabíveis já foram adotadas para garantir a responsabilização individual. “Nesse sentido todas as informações constantes desses relatórios estão sendo informadas aos interessados e à Justiça quando demandado”, encerrou o Ministério.

Investigação de “policiais antifascistas” foi arquivada no RN

No Rio Grande do Norte, segundo a defesa dos autores da ação, houve uma “perseguição aberta” a membros do movimento “Policiais Antifascismo do RN”. Em agosto de 2020, veículos de comunicação publicaram a informação de que 23 agentes de segurança pública, entre policiais civis, militares e bombeiros, foram investigados.

A investigação foi iniciada a partir de um vídeo divulgado por um agente da Polícia Civil que alertava participantes de uma carreata pró-Bolsonaro que seriam filmados e responsabilizados por descumprimento de decretos sanitários.

O caso ocorreu em abril de 2020. Em resposta a um pronunciamento do então presidente Jair Bolsonaro, que pedia o fim do “confinamento em massa” durante a pandemia de Covid-19, carreatas foram organizadas com os slogans “Bolsonaro tem razão” e “Brasil não pode parar”.

Como reação a essa movimentação, considerada um desrespeito às normas sanitárias da pandemia, o policial civil potiguar anunciou que atuaria nas futuras carreatas previstas para Natal e Mossoró, comunicando às autoridades para que efetuassem a prisão dos participantes por se tratar de crime em flagrante.

A partir daí, pontua a defesa, um relatório independente sobre os “policiais antifascismo” foi confeccionado pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN), com o suposto objetivo de identificar uma organização paramilitar.

A defesa dos policiais alega que o relatório do Gaeco continha “conclusões politizadas e impróprias”, tecendo juízos morais e subjetivos, como classificar o apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como “apologia a autor de crimes”.

Em setembro de 2021, a pedido do Ministério Público, a juíza da 10ª Vara Criminal de Natal, Lena Rocha, determinou o arquivamento do inquérito aberto para investigar o suposto grupo antifascista. No relatório final do inquérito, a Polícia Civil do Rio Grande do Norte também opinou pelo arquivamento.

Tags